Quando se julgava que a discussão sobre a vinda do papa já tinha esgotado todas as idiotias, o Partido Socialista produziu um novo episódio. Na semana passada, a Assembleia Municipal de Lisboa discutiu e votou uma proposta relativa ao empréstimo ao banco que a Câmara precisa de pedir para financiar estas obras – 15 milhões de euros. A aprovação era indispensável, e tinha regras diferentes do costume. Submetia-se a votação nominal, ou seja, cada deputado seria chamado a votar e responsabilizar-se individualmente; além disso, requeria maioria absoluta, ou seja, tendo em conta a composição da Assembleia, exigia 38 votos expressos “a favor” da proposta. Isto não aconteceu. Os deputados do PS abstiveram-se e só votaram “a favor” 25 deputados. A proposta foi rejeitada. Ainda assim, a presidente da Assembleia, Rosário Farmhouse, indicada pelo PS, declarou a proposta “aprovada”. Instalou-se um mal-estar na sala. Pela Mesa, passaram funcionários dos serviços, e a senhora presidente chamou os líderes das bancadas do PS e do PSD. Murmuraram coisas entre eles, voltaram a descer. A senhora presidente, em lugar de reconhecer o erro, decidiu passar ao ponto seguinte da agenda; e a sessão continuou imperturbada.

Na manhã seguinte saiu uma notícia na revista Visão, com o episódio descrito e comentado na versão de um deputado do PS. Desdobrava-se em exigências, e punha a possibilidade de “emprestar oito deputados” para aprovar a proposta, caso a Câmara decidisse voltar a submetê-la à apreciação da Assembleia (o PS trata os seus deputados como as esferográficas). E saiu também um comunicado da Mesa, em que Rosário Farmhouse informava que foi “um lapso”, e explicava que não sabia calcular uma maioria absoluta.

Não sabemos o que se passou nos bastidores. Se os partidos falaram, se escreveram, se existiu algum protesto, nenhum murmúrio veio a ouvir-se em público. E o que aconteceu naquele dia foi grave: uma degradação do funcionamento da Assembleia e uma ameaça à democracia. Num tempo em que as cabeças bem-pensantes se alarmam com a “ameaça do populismo”, a esquerda serve-nos este episódio. E se um dia aparecer um populista verdadeiro – e não um daqueles de fancaria, que o PS inventa para fingir que a direita é um perigo –; se um dia atacarem as instituições representativas por serem uma farsa, têm razões de sobra. Basta irem procurar no YouTube ou pedirem as actas da Assembleia Municipal. Trata-se do regular funcionamento das instituições. Em Lisboa, calam-se deputados, ignoram-se as regras e os procedimentos. As instituições não estão a funcionar regularmente.

O atropelo aos procedimentos é o atropelo à democracia. É um ataque à democracia. Porque os procedimentos são o que nos defende dos abusos de poder, e o respeito pelos procedimentos opõe-se à prepotência e protege-nos das arbitrariedades. E ninguém protestou. A Assembleia aceitou este atropelo. Causa arrepios, por parte da Mesa, dos partidos, e dos deputados, esta indiferença pelos procedimentos. E esta falta de respeito por eles próprios (informo que não estive na sessão; mais tarde, vi a gravação em vídeo). Defender a Assembleia não é tratar a presidente por “vossa excelência”, ou sequer tratarem-se assim uns aos outros, como tanto gostam e sabem fazer. Isso são as aparências, é a camada da superfície. Defender a Assembleia é denunciar as irregularidades. E defender a democracia não é vociferar contra o populismo; é defender a Assembleia. É assegurar e exigir o regular funcionamento das instituições representativas. O PS inventou, neste mandato, a pior presidência de sempre na Assembleia Municipal de Lisboa. Uma pessoa sem experiência política nem preparação para a responsabilidade do cargo. Esta semana, deixou entrar e permanecer na sala do plenário dois agentes da PSP; só interrompeu a sessão depois de ser interpelada por três deputados. Voltarei a este assunto, com todo o pormenor que ele merece.

P.S.: A propósito da visita do papa, convém rever a discussão mais ridícula da política portuguesa para assentar em certos aspectos. Contestaram-se os cinco milhões que custava um palco, retirado com pinças de um valor global de 35 milhões previstos pela Câmara de Lisboa, e de cerca de 100 milhões de euros que o Estado, central e local, prevê gastar em dinheiros públicos para a Jornada Mundial de Juventude. Uma contestação inteiramente determinada por imposturas. Não estava em causa a “laicidade”, nem nunca ninguém perguntou pelo “retorno económico” da mesquita que Fernando Medina anunciou construir na Mouraria. Não estava em causa a exigência de rigor e modéstia nos gastos públicos, que observou sem estremecer os três ou quatro mil milhões de euros que o ministro Pedro Nuno Santos sepultou na TAP – o templo da religião dele e de António Costa. E também não estava em causa o amor pelo escrutínio (que agora insultam chamando-lhe “transparência”), na semana em que os escândalos no governo central excederam todas as expectativas nas páginas dos jornais; e a Polícia Judiciária entrava outra vez nas instalações da Câmara de Lisboa para recolher provas da espantosa governação de Fernando Medina e Manuel Salgado. Lembremos ainda que as decisões sobre a vinda do papa datam de 2019, estava Medina na Câmara e António Costa no governo da República, ainda sem maioria absoluta. Ou seja, nenhum destes pretextos determinou a contestação ao palco. A esquerda quis descredibilizar Carlos Moedas, por ter sido ele quem a enfrentou e conseguiu ganhar. É preciso que o debate público acredite que “a direita não está preparada”, para que se pense que o problema está na oposição, quando ele está, pesado como um bicho, sentado no colo do Partido Socialista.

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