O vírus pode dominar o nosso corpo, mas não devemos permitir que domine as nossas mentes. Em artigo publicado aqui no Observador, na semana passada, alertámos para o elevado risco que corremos se optarmos por enfrentar o coronavírus numa abordagem bélica. Risco que se colocará se tivermos como objetivo único e absoluto a capitulação do vírus, passando por cima do cálculo dos custos económicos, sociais e de saúde pública das medidas drásticas implementadas e a implementar, e sem fazer a devida ponderação face às consequências, imediatas e mediatas, que tais medidas necessariamente vão causar.
Quem tem de liderar durante esta crise está perante um dilema no qual nenhuma das opções que venha a tomar deixará de ter consequências negativas, na linha do que a Teoria dos Jogos classifica de “no-win situation” ou “lose-lose situation”. Acresce que qualquer análise de risco resulta da ponderação entre o impacto e a probabilidade, comportando sempre o resultado projectado um grau de incerteza que, no caso do coronavírus, aumenta significativamente. Face ao limitado conhecimento científico existente à data, é impossível definir sem dúvidas substanciais quais as medidas certas a tomar, em cada momento.
Não sendo um exercício simples, há, porém, alguns aspetos nesta crise que não podemos deixar de considerar. É importante que uma parte da população que exige ruidosamente mais medidas de restrição, e que entende que a nossa existência, por caricatura, se deve reduzir apenas ao combate ao coronavírus, compreenda que não existem atividades sem risco, e que não há processos humanos onde o risco seja mitigável até à sua completa anulação. Desde logo, porque o custo de tal mitigação é na maior parte das vezes desproporcionado ou insuportável, mas também porque faz parte da natureza humana, e da nossa existência, assumir riscos. Nenhum de nós aceitaria uma proibição de circulação no período natalício apesar de nessa época haver um aumento significativo da sinistralidade automóvel. Como também nenhum de nós está disponível para ver os seus hábitos e costumes quotidianos escrutinados e controlados exaustivamente pelo Estado como forma de reduzir a mortalidade, por exemplo, ao nível das doenças cancerígenas ou vasculares cerebrais.
A incerteza e a excecionalidade que rodeiam o novo coronavírus exigem dos poderes públicos, na linha do princípio da precaução, ações ao nível da mitigação que necessariamente devemos aceitar, mesmo que a ameaça venha a revelar-se menos nociva do que aquilo que inicialmente projetamos. É dever cívico de todos ser solidário com decisões extraordinárias de reforço de meios, e até com fortes restrições temporárias às nossas liberdades (mesmo que possam vir a revelar-se excessivas no momento final da avaliação desta crise), facilitando a ação de quem tem de liderar e decidir neste contexto extraordinário. Mas não é exequível conceber medidas de mitigação que sejam incapazes de incorporar e aceitar riscos, causando danos que são incompatíveis com a convivência saudável numa sociedade onde existem múltiplos e legítimos interesses, e onde todos temos o direito de construir as nossas vidas, as quais merecem ser respeitadas.
Há muitos milhares de portugueses que já perderam ou perderão a curto prazo o seu emprego, uma parte importante dos quais ficará numa situação de grande fragilidade económica, social e até psicológica. Há centenas de milhares de portugueses que estão a ver o seu ano escolar irremediavelmente danificado, com prejuízos óbvios na construção do seu futuro se, entretanto, este não for retomado. Há, por exemplo, milhares de agricultores no Fundão que correm o risco de não poder fazer a sua colheita, logo num ano onde não faltam cerejas. Há borregos que têm de ser abatidos em Serpa, que fazem parte da nossa mesa pascal, sob risco de deixar na pobreza os que se dedicam ao seu pastoreio. Existem inúmeros negócios ligados à construção, restauração e turismo que tiveram de ser interrompidos, e muitos não irão já reabrir. Muito pequenos negócios que após anos de significativo esforço haviam atingido um equilíbrio frágil estão a fechar ou a ver degradada a sua base de sustentação. Muitas empresas vão ter de utilizar o fundo de maneio destinado a investimento para assegurar a sua sobrevivência. Há dezenas de milhares de intervenções cirúrgicas, exames de diagnóstico e tratamentos que estão a ser adiados, com inevitáveis consequências na saúde dos portugueses e na futura mortalidade associada a outras patologias. Estes custos não se sobrepõem necessariamente à aplicação de medidas de mitigação, mas precisam de ser ponderados na calibragem dessas mesmas medidas a cada momento.
O Estado português, em linha com a tendência maioritária a nível internacional, tem optado por restringir as nossas liberdades para poder dessa forma reforçar o sistema de saúde e atrasar o ritmo de propagação da pandemia. Começa porém a ser óbvio que o “lockdown” está a causar prejuízos e danos de enorme magnitude que dificilmente poderão ser compensados, seja porque as finanças públicas portuguesas não têm capacidade para acorrer a todos, seja porque fenómenos de rent seeking acabarão por desviar os recursos daqueles que mais deles precisam, seja porque há danos (incluindo de saúde física e mental) que, pela sua natureza, não são compensáveis. Importa aliás recordar que sem uma economia saudável não há saúde, pelo que não temos o direito de fragilizar, hoje, as condições de tratamento e acesso à saúde de todos os que, no futuro, vão precisar, nas diversas patologias, de assistência na doença.
Torna-se assim prioritário que, a par dos esforços de controle da pandemia e reforço da resposta do sistema de saúde, os poderes políticos organizem e sinalizem o regresso gradual à normalidade que, podendo não ser imediata, ser limitada, e com obrigações e sacrifícios para todos por um período mais longo, precisa ainda assim de um horizonte temporal claro.
No passado dia 13 de Março, o The New York Times lançou para o ar um podcast especial do programa “The Daily”, que batizou de “A Bit of Relief” (em português, “Um Pouco de Alívio”). No tempo que lhe foi atribuído, Dean Baquet, editor executivo do jornal, leu uma passagem do ensaio de C.S. Lewis, chamado “On Living in an Atomic Age” (em português, “Vivendo numa Era Atómica”), que na sua beleza e simplicidade, nos convida a ponderar e a regressar, com brio, à normalidade:
“Estamos em certa medida muito preocupados com a bomba atómica. Como devemos viver numa era atómica? Estou tentado a responder: ora, da mesma forma que vivemos no século XVI, quando as pragas visitavam Londres quase todos os anos. Ou como viveríamos na era dos Vikings, quando os bárbaros da Escandinávia poderiam visitar-nos numa qualquer noite, e cortar as nossas gargantas. Ou, na realidade, da mesma forma que já hoje vivemos numa era onde subsiste o cancro, a sífilis, paralisias, ataques aéreos, acidentes viários e ferroviários. Dito de outra forma, não vale a pena exagerar na novidade e excecionalidade da nossa situação. Acredite em mim, prezado senhor ou senhora, você e todos os que ama já foram condenados à morte antes da invenção da bomba atómica, e uma percentagem bastante alta de nós já iria morrer de maneiras desagradáveis. Na realidade, temos uma grande vantagem sobre nossos antepassados – os anestésicos. Mas ainda os temos. É perfeitamente ridículo choramingar e franzir o sobrolho porque os cientistas acrescentaram mais uma chance de morte prematura e dolorosa a um mundo que já se arrastava com essas possibilidades, e no qual a própria morte não era uma eventualidade, mas uma certeza. Este é o primeiro ponto a ser feito. E por isso a primeira ação que temos de tomar é recompor-nos. Se todos nós vamos ser destruídos por uma bomba atómica, ao menos que ela nos encontre fazendo coisas sensíveis e humanas — rezando, trabalhando, ensinando, lendo, ouvindo música, dando banho às crianças, a jogar ténis, conversando com nossos amigos à volta de uma caneca e um jogo de dardos – e não amontoados como ovelhas assustadas a pensar em bombas. Elas podem despedaçar o nosso corpo (um micróbio pode fazer isso), mas não precisam dominar as nossas mentes”.