Em 2003, quando ainda a procissão e o milénio iam no adro, Anthony Browne, um licenciado em Matemática por Cambridge, escritor, jornalista e colaborador do Times, publicou The Retreat of Reason – Political Correctness and the Corruption of Public Debate in Modern Britain.  E a título de exemplo, começava por denunciar a cortina de silêncio com que, por puro pudor e paternalismo ideológico, a imprensa britânica tinha velado a incidência de HIV nas comunidades de migrantes africanos. E isso era só um vislumbre: a Grã-Bretanha, que “durante séculos tinha sido um farol da liberdade de pensamento, de credo e de expressão”, via agora “a sua vida intelectual e política acorrentada”, com “vastas áreas de conhecimento” excluídas do debate pelos novos moralistas.

Browne resumia depois a Longa Marcha do marxismo cultural, da escola de Frankfurt à contracultura euro-americana dos anos 60, e daí até à hegemonia académica, sobretudo nas Ciências Sociais e, mais especificamente, nos “Estudos” sectoriais, que as universidades norte-americanas irradiavam para o mundo.

E os “Estudos”, pós-coloniais, feministas, interseccionais, proto-LGBTQ+ – que, no seu melhor, começaram por ser sedutoras “paranóias de tipo interpretativo” com “a força e a estreiteza da loucura” (para usar a definição de Pessoa do “critério psicológico de Freud”), capazes de nos alertarem para realidades encobertas, de acordarem outros sentidos nas obras literárias, historiográficas ou filosóficas, de abrirem caminhos e campos de investigação e de criaram novas oportunidades de trabalho –  foram tomados de assalto por zelotas.

Aconteceu também que o zelo destes zelotas, com o seu vocabulário esotérico (tanto mais complexo, sofisticado e “científico” na forma, quanto mais oco, medíocre e manipulador no conteúdo), se foi sobrepondo a tudo o resto… E foi seduzindo fundações burguesas e governos que, quais aristocratas francesas acarinhando nos seus salões as iluminadas ideias que haviam de cortar o pescoço aos seus filhos e netos, se foram rendendo ao charme discreto dos novos “sábios dos oprimidos”.

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E assim os “Estudos” cresceram e multiplicaram-se, enchendo e dominando a academia e reinando sobre todos os animais exóticos da terra. E desdobraram-se em Centros, Fóruns, Iniciativas e Observatórios, subjugando aqui, domesticando ali, preservando acolá, mas observando sempre.

E eis que, em incansável demanda por opressores e oprimidos, por macro e micro agressões, por visões alternativas e por subvenções, os zelotas que, do alto dos seus observatórios de marfim, tinham começado por promover a nova moral, passaram a perseguir os recalcitrantes – passados, presentes e futuros. Cada tique de linguagem, cada acto, palavra ou omissão, cada desvio do pensamento correcto, neutro e inclusivo, cada cisco, por mais ínfimo, no olho de um “opressor”, ou de um autor consagrado ou de uma figura histórica celebrada, era escrupulosamente observado, pesado, medido, condenado. E não se pense que os “oprimidos” conheciam melhor sorte: a eles também se exigia que não saíssem do redil e que se cingissem à identidade em que os novos moralistas os encurralavam… É que se não parassem quietos e se não se deixassem ficar oprimidos como lhes competia, se começassem a pensar e a reivindicar individualidades e especificidades, como é que queriam que os detentores da nova verdade e da nova moral os libertassem, lhes arranjassem subsídios e empregos nos Centros, Fóruns, Iniciativas e Observatórios que eles controlavam e os sustentam?

“Pensamento correcto” foi uma expressão abundantemente usada pelos partidos comunistas nos anos 20 e 30; Mao Tsé-Tung repetiu-a incessantemente nos seus escritos. Correcto, era todo o pensamento que estava de acordo com a linha do Partido ou que batia certo com as categorias históricas e sociopolíticas cientificamente estipuladas pelo Grande Timoneiro. Fora dessa correcção, não podia haver pensamento – mas não deixava de haver consequências.

Do pensamento correcto ao pensamento neutro e inclusivo

Dir-se-á que agora, com o actual “pensamento neutro e inclusivo”, que actua essencialmente no condicionamento da linguagem, não há consequências. Ou não as haverá tão imediatamente brutais e fatais. Mas não deixa de haver supressão do pensamento “incorrecto”, ou seja, inibição do pensamento. E se a nova ortodoxia parece não aspirar já a um tradicional “assalto ao poder”, é só porque a influência constante e progressiva nas mentalidades, traduzida depois em leis e regulamentos, tornou o velho “assalto” irrelevante.

Fora do discurso consentido, todo o discurso poderá facilmente ser denunciado como “discurso de ódio”, ao sabor do zelo e da criatividade dos sacerdotes do novo credo e do seu Index. Acresce que esta ortodoxia é tendencialmente elitista, acarinhando os magos e desprezando os pastores, procurando colonizar preferencialmente, por doutrinação ou pressão, as elites funcionais – ou, para usar uma linguagem mais consentânea, “a população em cargos académicos, artísticos, mediáticos e empresariais”.

Mas se a resistência vem das maiorias que o pensamento “neutro e inclusivo” discrimina, como as classes médias profissionais, as massas populares e religiosas e o grosso da população “binária”; vem também das minorias que o mesmo pensamento cristaliza.

Portugal no bom caminho

É por isso que consideram urgente domar a linguagem e explicar ao povo e às crianças o novo credo. Para uma educação neutra, as identidades nacionais devem então ser substituídas por uma humanidade global, fluída, indistinta, volátil, inclusiva. Bandeiras, só talvez a do arco-íris, devendo a História nacional ser reavaliada à luz do que foram “verdadeiramente” os “chamados Descobrimentos”: nada mais do que uma empresa comercial lucrativa, racista, esclavagista e exploradora dos povos africanos e ameríndios.

E estamos no bom caminho: temos uma investigadora que quer anexar notas pedagógicas anti-racistas aos Maias de Eça de Queiroz, um deputado que quer destruir o Padrão dos Descobrimentos, uns anónimos que acham que vandalizar a estátua do Padre António Vieira é lutar contra o racismo, e um Conselho Económico e Social que acha fundamental para a nossa economia e para a nossa sociedade que se adopte uma nova linguagem. Não restam dúvidas: entre a profunda ignorância de quem aparentemente pertence à “população com baixa visão” mas que frequentemente descobrimos como parte da “população em cargos de gestão”, estamos mesmo no bom caminho.

São tempos estranhos para a razão e para o senso comum, sob estas acometidas orwellianas, tão apartadas de qualquer visão minimamente realista da natureza humana, da criatividade humana e do pensamento e da acção humana que têm tudo para acabar mal.

Segundo o novo código de Hollywood, para que um filme se candidate aos Óscares, deverá agora ter “pelo menos um actor ou uma actriz principais de etnias sub-representadas” (asiática, hispânica, afroamericana, nativa-americana); e o elenco secundário terá de ter, “pelo menos, 30% de mulheres, LGBTQ+ ou pessoas com incapacidade”, que deverão “estar também representadas, de alguma forma, no argumento”. Enfim, perante esta sua sequela gramsciana, empalidece, acabrunhado, o realismo socialista da Rússia de Estaline (que sempre tinha Dziga Vertov e Sergei Eisenstein).

É todo um novo catecismo laico, mas promovido com fúrias de Torquemada. Aplicou-se, consciente ou inconscientemente, um princípio de desconstrução marxista, que passou da “classe social” para outras determinantes. Onde, na Vulgata, havia Burgueses e Proletários, Exploradores e Explorados, Patrões e Trabalhadores, há agora o mais fluído binómio Opressor-Oprimido – ainda que com categorias igualmente inflexíveis, de raça, de género, de comportamento social e político.

E tal como Marx, Engels, Lenine e Trotsky, que não eram propriamente proletários, adoptaram “a teoria do Partido como vanguarda da classe operária” para puderem liderar a revolução, também  os pioneiros da Correcção Política, que, na sua maioria, também não são propriamente “oprimidos de origem”, adoptam agora a teoria da vanguarda para poderem guiar e pastorear convenientemente os “novos proletários”. E assim como Marx e Engels sofriam com a adesão dos operários franceses e alemães ao bonapartismo ou ao socialismo patriótico, também os novos comissários políticos sofrem com os  trânsfugas das modernas massas “minoritárias” ou “oprimidas”  e sabem que não as podem deixar ao abandono. Têm de ser educadas e controladas. E, para isso, lá estão os capatazes, os quadros médios vigilantes, na Academia, no jornal ou na estação televisiva, prontos a seguir, por convicção, ignorância, ou dependência, a “linha geral” e correcta, a linha do Partido, e a punir os oposicionistas e os desviacionistas.

Para singrar neste mundo “neutro e inclusivo” há inúmeros filões a explorar, e as figuras e os escritores de outras épocas abrem toda uma vasta gama de apetecíveis e subsidiáveis possibilidades. E se ao ler Eça somos imediatamente confrontados com a ausência – e a necessidade, e a urgência – de notas pedagógicas anti-racistas, o mundo machista de Camilo, por exemplo, pleno de “discurso de ódio” contra “brasileiros”, de mulheres que acabam em conventos por paixões contrariadas, ou, pior ainda, que casam, têm filhos e estão contentes, afigura-se ainda mais necessitado de delações censórias. E Camões, e Gil Vicente, que riqueza para denúncias!

Lorena Germán, presidente do National Council of English Teatcher’s Comittee Against Racism and Bias in Teaching of English é um exemplo a seguir. À semelhança de Mao, que não gostava de Shakespeare ou o achava impróprio para as massas e por isso o proibiu durante a Revolução Cultural, Germán também não morre de amores pelo Bardo. Ou melhor, concede que “como qualquer outro dramaturgo” Shakespeare até terá um certo “mérito literário”, mas nada que ofusque a abjecta demonstração de “supremacia branca e colonialista” que os seus textos, e a importância que se lhes dá, exalam. E a violência, a misoginia e o racismo que descortina em Shakespeare, levam a professora a sugerir que se celebrem nas salas de aula “as vozes dos marginalizados”, até para mostrar aos estudantes “uma sociedade melhor”. Defende ainda que “é imperativo corrigir a mensagem que os educadores e os sistemas escolares dão às crianças”: Haverá uma linguagem “superior”? E qual deverá ser ela?  Quais são as histórias verdadeiramente “universais”? Que História devemos transportar para o futuro?

Cancelar Shakespeare

Shakespeare não será, evidentemente, um dos eleitos, uma das vozes a transportar para o futuro.  Até porque está longe de reunir os requisitos da nova linguagem e do novo pensamento neutro e inclusivo. É difícil encontrar um escritor onde a Humanidade, na sua grandeza e miséria, nos limites do sublime e da queda, no elenco dos sentimentos e dos sentidos, seja tão intrincada e completamente recriada – e isso, não só não é bom para as massas, como é, claramente, demais para a simplista e maniqueísta neutralização do pensamento que nos deverá guiar.

Mas haverá palavras “neutras” para falar de paixão mais inclusivas do que as que Shakespeare usou em Romeu e Julieta? Será só de “branquitude” que nos fala quando disseca os caminhos da tragédia, da ambição e do poder em Júlio César? Ou quando nos confronta com o ressentimento, a malevolência e o ciúme, em Otelo? Sim, Otelo, o “Mouro”, ou o “Negro” de Veneza, o condotiere mercenário, integrado por Desdémona, mas olhado sempre como um “cristão-novo” pelos patrícios. E a revolta das “minorias”, não estará lá na tirada defensiva de Shylock, no Mercador de Veneza, ou na sombra de Caliban, na Tempestade? Pouco importa: deixámos de precisar de Shakespeare, que só por preconceito e por imposição racista resistiu a séculos de leitura; o que o mundo e os estudantes agora precisam, o que todos nós precisamos agora, e urgentemente, é de linguagem neutra e inclusiva.

Marx era um grande leitor e admirador de Shakespeare, lia-o aos filhos e a família chamava-lhe “O Mouro”, por causa da sua obsessão por Otelo. Via em Shylock o retrato do explorador e Timon de Atenas serviu-lhe de ponto de partida para uma reflexão sobre os paradigmas do ouro e do dinheiro. Mas isso eram outros tempos, tempos opressores, em que “a cultura” era mais depressa valorizada do que cancelada, e em que o pensamento não era ainda suficientemente neutro e inclusivo.

Felizmente, e para desgosto das Lorenas Germáns deste mundo, não são só as “maiorias opressoras” que reagem… Alguns dos mais qualificados membros pensantes das “minorias oprimidas” também fogem ao espartilho imposto, resistindo ainda e sempre à neutralização do pensamento.

A grande poetiza negra americana, Maya Angelou, estava bem ciente que Shakespeare era branco, inglês e do Renascimento, mas, recordando a sua própria condição marginal na Carolina do Norte dos meados do século XX, escreveu a propósito do Soneto 29 (aquele que começa “When, in disgrace with fortune and men’s eyes /I all alone beweep my outcast state”):

Shakespeare escreveu-o para mim, esta é a condição da mulher negra. Claro, Shakespeare era uma mulher negra. Percebo-o bem. Ninguém mais o sabe, mas eu sei que Shakespeare era uma “mulher negra”.

Estamos com ela. Resistimos e vamos resistir à neutralização do pensamento. Pelas maiorias e pelas minorias.