Como lembrou Carl Schmitt, grande parte dos conceitos políticos modernos são conceitos religiosos secularizados. De facto, do Rei pela graça de Deus do Ancien Régime à sacralização rousseauniana da vontade geral, ou da vontade do povo; do Sermão da Montanha e da Revelação de um Pai comum a irmanar a humanidade ao discurso utópico e igualitário construído a partir da sua laicização, temos muito por onde escolher.

Um dos traços desta secularização é a transposição para a política, para a acção política, para a luta política, das categorias absolutas de Bem e de Mal. O dualismo Luz e Trevas, Deus e Diabo, entraram em força no mundo político com a cristianização do império romano e a romanização do cristianismo a partir de Constantino. Como no mundo helénico havia um cosmos e um caos, assim também na Idade Média passava a haver um mundo cristão e um mundo pagão, separados pelas fronteiras do Bem e do Mal. Depois, no século VII, com Maomé e o mundo islâmico, viria outro dualismo.

A evolução no Ocidente foi no sentido da separação progressiva da religião e da política, do poder espiritual e do poder temporal. Por algum tempo, na luta entre o Papado e o Império, no coração da Idade Média, quer o Papa, quer o Imperador quiseram chamar a si os dois gládios. Mas fracassaram e, com o seu fracasso, contribuíram para a autonomia e consolidação do Estado soberano como forma vencedora de organização do poder político-territorial nos reinos que floresceram na Europa a partir dos séculos XV e XVI.

Mani e os Maniqueus

Mani nasceu na Babilónia no século III. Vinha de uma seita de judeus cristianizados e inscrevia-se, como profeta, numa linhagem eclética que começava em Adão, passava por Buda e Zoroastro, e chegava a Jesus. Mani queria ser o arauto de uma nova revelação que fundasse uma religião unificadora de todas as outras. Teve várias visões e a sua pregação ganhou o favor político do soberano. Mas não acabou bem.

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O maniqueísmo é uma forma de gnosticismo: há uma luta eterna entre o Bem e o Mal, o Espírito e a Matéria, o Reino da Luz e o Reino das Trevas e, entre estes polos, não há conciliação nem reconciliação possível. Este mundo é uma espécie de degredo e de exílio, de onde os bons voltarão ao Paraíso e os maus entrarão no circuito da reencarnação, passando por sucessivas mutações até se redimirem.

No mundo tradicional, o maniqueísmo em relação a ideias, crenças e comportamentos, a separação radical de Bem e Mal, a exclusão dos dissidentes, a proibição da palavra e da formulação de alternativa, estiveram do lado do Estado e da Igreja que, por vezes, coincidiam na linha de poder. A virtude identificava-se com a ordem e a lei e estas defendiam-se preventivamente, proibindo e reprimindo. Em nome de Deus e do Rei.

No século XVI, uma geração de escritores políticos realistas – com Maquiavel à cabeça, mas também com os seus contemporâneos e amigos Francesco Guicciardini e Francesco Vettori – trouxe uma análise diferente, não maniqueia, às coisas políticas. A Itália de então, com as suas repúblicas independentes, com os seus condottieri passados a senhores das cidades, com os Estados papais, com o Reino de Nápoles, era um microcosmos de uma Europa que, apesar de tudo, sempre admitiu valores contraditórios e até progrediu nessa dialéctica.

Com a Reforma luterana e as guerras civis subsequentes, nos países que se dividiram, como a França, ou nas monarquias nórdicas, onde a Reforma triunfou, voltou a imperar a ideia de Bem e de Mal absolutos. Os protestantes, onde venciam, passavam a proibir e a reprimir, fazendo aos católicos o mesmo que os católicos lhes faziam em Espanha e em Portugal, com a Inquisição. E se Maria Tudor, a Bloody Mary, perseguira os protestantes, a sua meia-irmã, Isabel I de Inglaterra, seria igualmente sanguinária na perseguição aos católicos. Houve mártires dos dois lados.

E assim continuaria a ser, quando às religiões sucederam as ideologias. Em meia dúzia de meses de Terror, a Revolução Francesa, feita em nome da Liberdade, perseguiu o Trono e o Altar, e até o povo crente, e executou na guilhotina mais gente por crimes políticos do que o Ancien Régime durante todo o século XVIII. Robespierre, melhor que ninguém, explicou que os reinos da Virtude implicavam e justificavam o Terror para os não-virtuosos. Os bolcheviques fariam o mesmo e, mais uma vez, em poucos meses, as Tchecas matariam mais do que a política czarista – a Okhrana – durante todo o século XIX. À nossa escala modesta e de brandos costumes, também o regime democrático conseguiria a proeza de, em Outubro de 1974, ter mais presos políticos do que aqueles que estavam nas prisões do Estado Novo no dia 25 de Abril.

Eça de Queiroz, quando imaginava um futuro longínquo (aí para o século XXVIII) em que os seus pobres netos passariam “ao estado de raça maldita” e morreriam “nos suplícios”, pagando pelo “gozo que nós, conservadores, temos hoje de triturar os Messias socialistas”, falava, já não da laicização política da religião, mas da elevação da filosofia política a religião e dos seus “santos padres” a Messias – seguidos por fiéis, furiosos e maniqueus, ávidos de extermínio:

“Talvez um dia, quando o socialismo for religião do Estado, se vejam em nichos de templo, com uma lamparina na frente, as imagens dos Santos Padres da revolução: Proudhon de óculos, Bakounine parecendo um urso sob as suas peles russas, Karl Marx apoiado ao cajado simbólico do pastor d’almas.”

O maniqueísmo, na forma moderna que assumiu, ainda que se situe para além de Deus e do Diabo, insiste em traçar linhas vermelhas entre bons e maus que tendem a exceder em zelo anteriores fanatismos: quem não pensa de acordo com os cânones correctos – intelectuais, culturais, éticos ou políticos – é um agente das Trevas e do Mal a liquidar; um doente (um “fóbico”) a interditar, um obstáculo ao futuro radioso da humanidade, do reino animal e do planeta que não vale o Co2 que emite.

É um processo mental indissociável das formas tradicionais de terrorismo, conservadoras ou revolucionárias, que parte da maldade intrínseca dos dissidentes do pensamento único, instituído ou a instituir. Os inquisidores espanhóis do século XVI, os jacobinos do Terror de 93 e os bolcheviques de 17 pensavam assim, e é assim que pensam os seus discípulos – só que, por ainda vivermos em regimes constitucionais, não podem queimar os hereges, como os torquemadas, guilhotinar os aristocratas, como os convencionais de Robespierre, ou enterrar vivos os camponeses contrarrevolucionários, como alguns tchequistas mais imaginativos.

A minha experiência de católico pecador com muitos anos de luta política – embora não partidária – ensinou-me que há boas causas servidas por pessoas “más” e causas más servidas por pessoas “boas”, e que todos somos um “misto de trevas e brilho” (ainda que a percentagem de trevas a que resistimos ou a que cedemos não seja de todo indiferente).

Os maniqueus não pensam assim: escolhem um fim a atingir e, para que possa justificar todos os meios, transformam-no em verdade “cientificamente” revelada; elegem um grupo de vítimas e de iluminados, e condenam todos os outros às trevas.

É de maniqueísmo o tempo que vivemos, um maniqueísmo que se alimenta da crescente ignorância das elites e do povo; um maniqueísmo que já não canoniza pensadores, mas “minorias” e comissários. Para todo o que cumpre os preceitos, as rezas e as devoções que constam da nova Vulgata, a salvação; para todo o que ousa resistir ou discordar, alcatrão e penas. É este o maniqueísmo que soma e segue perante o encolher de ombros da maioria crítica, que se limita a dizer que chegámos ao manicómio.

E chegámos. Ou não fossemos todos sendo, à vez, diagnosticados como “fóbicos”, porque patologicamente resistentes aos mais desvairados “progressos”; como “populistas doentios”, porque obcecados em denunciar o alheamento do bem público (e o alienamento dos bens públicos); como “iliberais exacerbados”, porque cegos ao exemplar funcionamento das instituições democráticas; ou como “racistas abjectos”, porque só denegrindo alguém podem branquear-se os colarinhos dos comissários do Bem.