Certamente que quem acompanha as notícias recentes sobre o conflito na Faixa de Gaza dilui-se num mar de contradições. Como optar de forma lógica e empática por um dos lados? Ser israelita? Ser palestiniano? Parecem termos contraditórios e antagónicos. No entanto, a distância entre estas duas entidades é de cerca de 2 quilómetros, cindida por um muro e diversas barreiras. Fora isso, todos são humanos, demasiado humanos. Nascer num dos lados faz, de facto, toda a diferença. Tivesse eu nascido palestiniano, e conhecendo-me, seria abertamente do Hamas. A dor de nascer num espaço circunscrito, vedado á vida, ladeado por muros… Nascer desprovido de esperança de romper as barreiras que se afirmam no horizonte? Um legado, quem sabe, marcado pela dor da perda por um ataque israelita num conflito anterior? O que faz de nós um terrorista? Qual a diferença entre aquilo que nós, ocidentais privilegiados do norte, seres viajados, sofisticados, cosmopolitas, consideramos como aceitável enquanto afirmação de um ímpeto vingador? Avançar sobre inocentes, que vivem o seu quotidiano num Kibutz anónimo e insignificante, ou premir o botão que lança um míssil sobre uma posição prevista de assumidos terroristas? A resposta não é fácil.

Haverá posição admissível neste conflito? Tenho feito o exercício, creio que saudável, mas duro, de incorporar cada um dos opositores neste conflito. Imagino-me nascido algures em 1970 na Faixa de Gaza. Encontro-me desprovido da minha mentalidade europeia. Não é fácil… Nasci num meio desprovido e hostil. A acuidade histórica e formal da realidade escapa-me. A minha família tem um historial de dor e de opressão. Alguns foram mortos em bombardeamentos. Outros anularam-se no decorrer de uma vida circunscrita e sem esperança. Não interessa o direito internacional. Não interessa o rigor histórico. A crueza da realidade nua e crua da vida, da condição humana, essa, vivo-a na pele cada dia da minha existência. A sede, a fome, a dor, a humilhação de ser-se algo que não é aceite, que não consegue afirmar-se. O ódio acumula-se. A ideia de infligir dor a um antagonista disforme de desmedido cresce de modo descontrolado. A família desaparece. A identidade confunde-se com a dor. Ser-se algo, passa a implicar o sofrimento do «outro» desconhecido. A dimensão da vida perde-se. Esse «outro» não é um ente equiparável. Não é pai, não é mãe, não é filho ou filha, não é irmão… Torna-se num alvo. Num eixo de dor que importa suprimir.

Atinjo a maioridade, e desprovido de referentes familiares, adiro a movimentos que me oferecem uma oportunidade de vingança. A ausência de identidade preenche-se com a simples ideia de que a morte do «outro», compraz uma possível razão existencial. Desde a minha mais remota infância, que esse «outro», aquele que habita no outro lado do muro, constitui um ser disforme, horrendo, desprovido de qualquer dimensão compassiva. O ódio cresce naturalmente na estrutura ontológica do meu ser. Não sei quem sou. É cru, é horrendo, mas natural… A violência cresce. Quando trespasso as barreiras daquela fronteira mítica que marca o meu mundo do resto do universo, o ímpeto torna-se imparável, apelativo, crescente. Mato para não ser morto. Cometo atrocidades em nome de uma identidade que desconheço. Há muito que a humanidade abandonou o meu mundo. Moral? Religião? Deus está morto há muito… Aqui é o homem, brutal na sua essência, que marca o compasso da existência. Deus encontra-se ausente há muito nestas fronteiras. Talvez nem exista… Talvez não passe de uma referência esquecida. Um sonho de respeito, de aceitação, de sacrifício… Antigo, anacrónico e inaceitável nos dias que correm.

Sou humano, demasiado humano como diria Nietzsche. No Anticristo, Nietzsche fala-nos precisamente sobre esta condição que nos está colada à pele: «Olhemo-nos de frente (…) Descobrimos a felicidade, sabemos o caminho que a ela conduz, encontrámos a saída após milénios de labirinto. E quem, além de nós, a encontrou? – O homem moderno, talvez? – «Eu não sei o que fazer; sou tudo aquilo que não sabe o que fazer» – suspira o homem moderno… E é dessa modernidade que sofremos – da paz podre, do compromisso cobarde, de toda a virtuosa imundície do moderno sim e não».

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A imundice do sim e do não. De que lado da barreira me encontro? Do lado do sim? Do lado do não? A morte habita ambas… Como é fácil tomar uma posição no conforto setentrional do ocidente. Quem sou eu, se não for quem penso ser? Quais os valores morais que me comandam?

Agora imagino-me israelita. Nascido algures em 1970. Crescer com a memória da aniquilação e o orgulho desmedido de uma afirmação inabalável de existir marcou o meu ser de forma profunda. Nas minhas veias, vejo correr o sangue dos meus ancestrais. Alguns sucumbiram nos ignóbeis campos de concentração. Outros sobreviveram a séculos de aniquilação, de ódio, de intolerância. Nasci num meio onde a sobrevivência é um código semântico natural. Lutar faz parte de um quotidiano existencial que não obriga ao raciocínio… É natural. Visceral, diria…

Conheço um povo que anseia pela nossa aniquilação. Dizem-me, que vivem do outro lado de um muro. Muro esse, que não é suficiente o bastante para tornar a sua existência numa lenda distante. Estão presentes… Desconfortavelmente presentes… O seu ódio chove sobre nós. Na forma de morte. Flechas de dor e morte são lançadas sobre a nossa existência quotidiana. Nenhum de nós sabe muito bem a razão dessa realidade. Apenas sabemos que odiamos esse facto. Destrói lentamente a nossa razão de ser. Corrói-nos por dentro, por mais que queiramos afirmar um simulacro de normalidade nas nossas vidas. Todos sabemos que o povo do outro «lado» do muro nos odeia. Todos sabemos que alguns anseiam pela nossa morte. Alguns de nós também anseiam pela destruição dessa entidade disforme que nos impede de viver a plenitude das nossas vidas. De sermos plenamente humanos.

Frente a frente num espelho, o homem do Hamas e o homem das IDF anseiam pelo mesmo. Uma vertigem de identidade. De sobrevivência. Em última análise, uma resposta simples a uma questão ontológica: O que significa ser-se humano? Qual o limite da humanidade? Matar uma criança à queima-roupa? Disparar remotamente um míssil que mata uma criança? O que faz de nós humanos? A capacidade de coabitar ou o ódio com que nos destruímos mutuamente? O horror de ambas, não deixa escolha plausível. É preciso nascer-se de cada um dos lados da barricada para sentir… Vejo-me claramente palestino e israelita. Consigo medir a dose de ódio nas duas situações. Não consigo tomar partido nesta guerra visceral e desumana. O tempo, sobrepôs-se há muito sobre a razão. Tem-se falado muito de barricadas. Em qual devemos assentar o nosso corpo vulnerável e assumir uma posição? Pois… A morte é, de facto, algo distante das nossas vidas confortáveis e relativamente tranquilas. Mas se algo constituir uma ameaça à nossa carcaça humana, rapidamente nos tornamos verbos. Os nossos dilemas morais? A terapia que fazemos para aplacar as nossas dores emocionais? Tudo mentiras… Eu, mataria em qualquer um dos lados da barricada. Tenho de aceitar e reconhecer. Todos deveríamos assumir essa condição… Infelizmente, o ódio latente no ser-se humano, faz de nós uma amalgama disforme e nem sempre agradável à vista.

Tudo se relativiza numa guerra visceral. No Anticristo, Nietzsche fala-nos precisamente desta dualidade da razão perante a falibilidade ontológica do ser: «O problema que aqui coloco não é qual a sucessão do homem na escala dos seres (– o homem é uma finalidade –), mas sim qual o tipo de homem que se deve criar, que se deve pretender, que tipo será mais valioso, mais digno de viver, mais seguro de futuro?»