Quando era miúdo, uma das coisas que mais me encantava nos armários da minha avó eram as  suas gavetas acessíveis a um breve puxão e toda a descoberta que se seguia. Associava as gavetas  a sítios onde encontrava todo o tipo de achados, desde rebuçados, baralhos de cartas, canetas,  coisas incompreensíveis para crianças, como documentos oficiais, e principalmente fotografias  das centenas de festas de anos e dezenas de batizados. As gavetas eram o significado de uma  memória ou olhar sobre o passado acessível em qualquer casa portuguesa. Melhor, qualquer casa  europeia.

Na contemporaneidade, e sempre que olho para o novo modelo de móveis que revestem as casas, vejo que as gavetas são cada vez mais uma ausência no exterior da construção da peça e inacessíveis a crianças. Contudo, elas existem, apenas tomaram outra forma. Esta predisposição  de encontrar memórias e o passado era para todos os efeitos uma das minhas formas de me construir. Aqueles pedaços de memória contribuíram para a minha ideia de passado e ajudaram-me  em grande medida a construir aquilo a que hoje chamo personalidade e identidade. Hoje, sinto  que, tal como a nossas gerações perderam a possibilidade de se recriarem numa gaveta, a  identidade social perde-se em grande parte à falta desses espaços de descoberta.

O passado, figura que tem como particularidade a impossibilidade de alteração, apesar da  possibilidade de imposição de diferentes narrativas, teve sempre como função construir num  grupo social, estado ou nação a ideia de uma pertença a algo muito concreto como valores, costumes e tradições, assentes num percurso com muitos anos de história. Este conjunto de elementos, que usualmente referimos como cultura de um povo ou nação, era a nossa marca de união social e a premissa base para a construção de um futuro.

Nós, europeus, vivemos este passado como em nenhuma parte do mundo. Os lugares ocupados  pelas nossas velhas e muitas vezes mortas instituições continuam a ser a marca da nossa identidade. A tia que não vemos há 20 anos continua a fazer parte do imaginário que nos define  enquanto indivíduo; o livro, a pintura, a igreja que não lemos, vemos ou frequentámos há 20 anos continua a definirmo-nos como povo. Foram estas gavetas que construíram a Europa. A nossa  cultura é uma nota de rodapé de todas as obras anteriores. O renascentismo é Roma, mas é ao  mesmo tempo a Grécia e muitas outras formas que a Europa teve. A liberdade é uma réplica do  momento democrático da Grécia Antiga, mas é também uma contradição quando nem todos a  tinham. A revolução é para nós um momento de afirmação perante o passado, mas também a  necessidade de corresponder a esse passado. A Revolução Francesa procurou cumprir os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade há muito espalhados na Europa, mas não deixou de contribuir para o regresso de formas totalitárias, de um novo César e de um conjunto de contradições que fazem do nosso continente o único que vive preso a ideias conflituantes.

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É nesta contradição que se funda o ideal Europeu. Um continente que escravizou enquanto pregava  a liberdade, um continente marcado pela ideia religiosa de compaixão e reciprocidade, que ao mesmo tempo alimentava um conjunto de famílias poderosas e que dominaram a Europa durante  séculos. Um continente que sempre viu no futuro a sua salvação e que tudo o que faz é concretizar e aproximar-se do seu passado.

A Europa hoje está em declínio, perdeu a sua relevância no panorama internacional, não se compara, nem entra, no xadrez político dominado pela China, EUA e Índia, vive uma guerra no seu coração, assiste a uma crise de refugiados para a qual não tem resposta e a um grave problema de justiça intergeracional. Contudo, e apesar do seu glorioso passado e triste futuro, como muitos apontam, continua a ser o único local do mundo onde o Estado Social é uma realidade, onde a  Liberdade é um pilar de todas as decisões e principalmente onde cada um de nós,  independentemente do seu lugar de nascimento, tem mais oportunidade do que noutros países. O  mundo é uma grande lotaria social, a Europa continua a ser o único sítio onde prestamos e  recebemos caução.

Porém, a realidade é que nenhuma ideia vence a necessidade. É preciso fazer mais e as pessoas  necessitam de mais. Hoje, em Portugal vemos isso todos os dias, os europeus perderam grande  parte das suas condições sociais. Ir ao supermercado traduz-se num exercício económico de perda  de rendimentos, os jovens continuam sem oportunidades e a habitação, direito constitucionalmente consagrado, perde-se num mercado selvagem. A necessidade, a fome e o sustento, faz com que as pessoas procurem uma resposta rápida aos seus problemas, sabendo  muitas vezes que a mesma não compreende um fundo de verdade.

A necessidade associada à perda de gavetas coletivas faz com que os extremos sejam outra vez um inimigo da Europa. Hoje toda a nossa memória individual e coletiva é digital, ninguém lê  livros, ninguém vai a um museu por razões contemplativas, ninguém quer perder tempo a ouvir uma opinião contrária. Queremos consumir a opinião, sabedoria e experiência. Queremos  presenciar cultura e não vivenciar. É impossível irmos a um concerto e não ver mais de metade  do público a gravar ou transmitir em direto esse concerto. Esse alheamento da realidade, essa  experiência coletiva numa rede digital, traduz-se na perda da premissa mais importante do ideal  Europeu, as suas gavetas.

Uma gaveta digital é como um armário sem gavetas à vista, de forma espontânea nunca nos iremos  deparar com um achado ou uma memória de um passado que nos define. O digital consome-se e  consome-nos, mas não nos espanta, não cria em nós uma parcela única de identidade, corresponde ao ideal fordiano de padronização.

Nesta Europa que não sobrevive sem gavetas e que encerra nas suas contradições a sua beleza, é importante que políticos corajosos surjam e criem de novo aquilo que nos define nos nossos  melhores momentos, a ponderação, moderação e humanidade.

Para isto, temos de deixar cair os extremos, à direita mas também à esquerda, e continuar a, através  de um passado de contradições, apostar num futuro de inovação. Para esse futuro precisamos de todos, dos que querem para aqui imigrar, dos mais experientes, dos mais jovens. E precisámos de reativar as nossas gavetas, urge canalizar verbas e programas diferenciadores para a cultura.

Ainda me lembro da felicidade de ver os meus pais jovens e do desafio de me criar e tornar adulto.  É importante abrir a gaveta para encontrar o que nos fez e decidir o que queremos ser.