É a novidade do ano: os banqueiros do regime aprenderam a falar. E, adquirido o dom, falam muito. Há umas semanas, foi Ricardo Salgado, numa entrevista de várias páginas. Agora é Jorge Jardim Gonçalves, ex-presidente do BCP, em quase 700 páginas de conversa com Luís Osório. O volume tem como subtítulo “o poder do silêncio”. Mas é óbvio que já não é esse o poder a que o “banqueiro da Democracia” aspira. O poder que lhe resta é o poder de falar.
Jardim faz o retrato de uma época. Entre outras coisas, vemos um primeiro ministro, António Guterres, obrigar Jardim a financiar a ONI (pp. 308, 548), e vemos outro, Durão Barroso, “matar” a ideia (p. 411). Em Portugal, a mão é visível. Esta é a história de um regime em que o poder político descurou a regulação para fazer negócios, ditar transações e impor parcerias.
Os constitucionalistas podem descansar: o poder económico está mesmo sujeito ao poder político. Não por escrúpulo constitucional, mas por consciência das origens. Jardim Gonçalves deu o primeiro passo para a grandeza, em 1979, na presidência do nacionalizado BPA. Daí saiu, em 1985, para fundar um banco privado, o BCP, que lhe serviu, amparado pelos governos, para adquirir o BPA (pp. 301, 508). Cresceu assim. Quando ameaçou insolvência, um governo salvou-o (p. 332). E seria outro governo, em parceria com o poder angolano, a pôr termo à história, aproveitando as brigas entre directores e accionistas para anexar de facto o BCP. Em vinte anos, o círculo ficou completo e tudo regressou à origem: o Estado.
Jardim Gonçalves descreve José Sócrates a colecionar bancos como quem joga ao Monopólio: já tinha a CGD, controlava o BES explorando a “ambição de Ricardo Salgado”, e queria juntar o BCP à colecção (p. 168). Para quê? Por exemplo, para “influenciar directamente mais de 80% do mercado de crédito suportado por activos mobiliários” (p. 127). A ideia socrática, segundo Jardim, era esta: “Financiamos as empresas e os interesses que desejamos, a própria República poderá implementar uma política de juros ambiciosa e endividar-se com mais facilidade” (p. 168).
O livro faz muita questão em distinguir Jardim das “grandes famílias” bancárias do passado (p. 192). Está certo. Ele emergiu da nova “grande família” chocada no aviário político da democracia: a rede de ex-gestores de bancos nacionalizados, ex-ministros, ex-secretários de Estado, ex-assessores, etc. Jardim não foi ministro, mas Mário Soares, ainda dado ao bom humor, tratava-o por “senhor ministro” (p. 413) — os bancos eram vistos assim, como parte do aparelho de Estado. Reparem: não discuto aqui valias pessoais. Registo trajectos.
Jardim não parece aperceber-se de que o seu livro põe em causa não apenas A ou B, mas o sistema de que ele foi um dos principais protagonistas. Bem sei que o dirigismo económico, os protecionismos, as nacionalizações, as “políticas industriais”, a mitologia dos “centros de decisão” não são exclusivos nossos na Europa ocidental. Mas este sistema, em certos aspectos, lembra mais a Rússia do que lembra a Alemanha.
Na história de Jardim Gonçalves, a banca portuguesa parece frequentemente reduzida a uma infra-estrutura criada e gerida pela classe política, a fim de apertar o controle da sociedade e da economia. Terá servido para tudo. Até para amamentar financeiramente os partidos, incluindo a extrema-esquerda (p. 501). Posto isto, deveremos espantar-nos da recorrência de erros de gestão e irregularidades de procedimento? O rigor só se aplicava aos que desalinhavam. Um dia, o velho Champalimaud irritou o governo. Resultado: “todos os dias surgiam brigadas do Estado a pedir papéis, actas e balancetes” (p. 307).
Em Portugal, o poder económico é um avatar do poder político. Perante isto, os idiotas úteis da extrema-esquerda cumprem uma função: ao atacarem o “capitalismo” e o “poder da banca”, ajudam a esconder o verdadeiro poder atrás de uma cortina de fumo demagógico. Sim, parece que os banqueiros do regime aprenderam mesmo a falar. Agora só falta que nós aprendamos a ouvi-los.