Durante muito tempo, pessoas com grandes fortunas acumuladas transformaram as próprias riquezas em investimentos filantrópicos, como instituições educacionais abertas a todos os cidadãos e destinadas a promover a mobilidade social e económica em grande escala. Hoje, estão mais focados em competir entre si numa corrida pessoal ao espaço.

Quando é que os mais ricos pararam de construir museus e bibliotecas para a comunidade e começaram a ir para o espaço como uma experiência exclusiva?

Romper barreiras extraterrestres é muito emocionante para alguns e enormes somas de dinheiro são investidas em projetos cujo objetivo é tornar possível a vida fora da Terra – colonizar o sistema solar! Sim, Marte pode ser o planeta mais compatível para a vida fora do nosso, mas a melhor chance da humanidade para algo próximo de uma “vida boa” está aqui na Terra e muito mais pode ser feito para garantir um futuro decente para todos.

No último mês apenas, o oceano ficou em chamas, inundações e incêndios mataram centenas de pessoas e criaturas marinhas foram cozidas até a morte nas próprias conchas devido a ondas de calor recordes. Num momento inegável de emergência climática, a melhor aposta seria investir na preservação do único planeta capaz de nos dar uma vida digna, ao invés de esperar que o espaço nos hospede com sucesso.

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Eu sinto-me culpada do impacto ambiental causado pela viagem de avião compartilhado com mais de 100 pessoas que vou tomar para ir visitar a minha família fora de Portugal. Será que o punhado de pessoas que foram ao espaço para diversão durante 180 segundos também sente algum tipo de culpa? Um foguetão desse tipo produz até 300 toneladas de dióxido de carbono, emitidos diretamente para a alta atmosfera. A alta atmosfera está longe do nosso alcance por um motivo… apenas água injetada na alta atmosfera – onde pode formar nuvens – pode ter impacto no aquecimento global. Com os foguetões, não estamos falando apenas de água, eles emitem querosene, hidrogénio líquido, cloro e outros produtos químicos também.

Não me entendam mal… não sou contra a inovação nem uma tecnófoba e certamente não quero que os humanos voltem para a caverna! Sendo uma jovem ativista pela sustentabilidade, queria que os humanos e as tecnologias fizessem o melhor que pudessem para cuidar de um planeta que cuidou de nós desde o início dos tempos. O dia da sobrecarga da Terra – em que se esgota a nossa cota de recursos naturais para 2021 – foi há poucos dias, a 29 de julho. Estou cansada das dinâmicas que impulsionam implacavelmente o crescimento infinito num planeta que tem recursos finitos. Estou cansada de ver valorizadas mais as conquistas materiais do que o cuidado e a sustentabilidade, que são essenciais para a nossa qualidade de vida.

Vejo as viagens espaciais e a colonização como apenas mais um passo dado na profunda obsessão do crescimento económico eterno, uma insistência de que mais é sempre melhor, uma compreensão de que é verdade que a Terra não pode sustentar um crescimento infinito e então precisamos expandir para o espaço.

Aprender a viver bem num planeta frágil é mais importante do que sonhar com o próximo. Compartilhar riqueza, segurança e conforto entre todos os seres vivos é mais importante do que três minutos de gravidade zero.

O glamour e a satisfação pessoal não deviam assentar em viagens à “fronteira final”, mas sim na contribuição para um mundo livre de injustiças onde possamos viver sem temer quando novos fogos incendiarem a próxima emergência.

Anna Masiello tem 27 anos, é italiana e fez um mestrado em Lisboa em Estudos do Ambiente e da Sustentabilidade no ISCTE-IUL. É empreendedora e ativista ambiental, com foco no tema do consumo consciente, justiça climática e redução do desperdício. Fundou a startup R-Coat com a qual transforma guarda-chuvas partidos coletados pela comunidade em casacos e acessórios únicos, evitando emissões de gases de efeito estufa e contribuindo para uma indústria da moda mais sustentável.

O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.