“Deus existe, mesmo quando não há. Mas o demónio não precisa haver para existir.” A frase é do escritor João Guimarães Rosa em “Grande Sertão Veredas.” O pensamento é de Riobaldo, o jagunço do sertão, protagonista e narrador da sua própria aventurosa história, no romance que é um dos clássico na grande literatura do século vinte. Desde a hora de nascer, e em mil perigos passados, pelo muito a que assistiu e o mais que experimentou, Riobaldo conhece os extremos do bem e do mal na natureza humana. Faz profissão de fé, crê em Deus e os malefícios da vida levam-no a acreditar que o diabo não é invenção, mas verdade.

Nestes dias de quarentena, emergência, confinamento, a Deus e ao demónio de Riobaldo, acrescento a minha atual terceira matéria de fé. Creio hoje na Ciência como salvação universal. Agora que até os descrentes pedem a Deus que nos livre do mal, peço eu aos cientistas que investiguem, que avaliem, que descubram, que resolvam. Vacina tornou-se palavra sagrada, sempre que se pronuncia. Um milagre. Quando acontecer, será a expressão de todos esses que sem pausas nem descanso irão conseguir a fórmula, o formato, a face da liberdade que havemos de conhecer.

Ninguém mais tem certezas imediatas, neste tempo. Reencontro a personagem de Riobaldo, na evocação do Demónio que tem andado por aí à solta, sem barreiras nem fronteiras, sem compadecimento ou compaixão. Não tenho diabos na minha cabeça, mas fico intrigada por pensar que talvez nunca como agora a vida e a morte tenham estado assim ligadas por um fio. Na infinita diversidade das nossas desigualdades e diferenças, os pobres e os poderosos se encontram. Conhecemos o medo, a inquietação, o desassossego que se sentem e pressentem nas notícias que nos chegam, sem pedir licença para invadir as casas e perturbar os espíritos. Dizem que os velhos perderam a alegria, que ansiedade cresce, que a demência aparece.

E no romance de Guimarães Rosa, a história segue na criatividade do escritor, e vai a leitura no prazer e na balada das palavras. Mais adiante, em “Grande Sertão Veredas”, diz o narrador, a propósito de violência e fatalidade. “Vivendo se aprende, mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.” Conforme correm os dias, não me consolam os gráficos, as percentagens, as proporções. O que é dito implica dúvida e prudência. Os resultados são relativos, num esperado futuro se saberão as respostas que no tempo presente nos afligem. Como serão os costumes, os comportamentos, as expressões do amor? O sentir da saudade? Do corpo? Da alma? Da música? Da arte? Em crónica recente no jornal Público, deseja o jornalista Vicente Jorge Silva que, depois de passada esta fase, haja um “outro mundo mais livre, mais justo, mais igualitário e mais frugal, menos alienado pela febre consumista.” Nesse mundo que precisa de exemplos solidários, “nunca a Europa foi tão necessária como agora.” E por não ser a sua crónica catastrófica, acaba com uma confessional justificação: “Tenho perfeita consciência da tentação utópica deste texto, mas nestes dias seja-nos também permitido sonhar. E acreditar.”

Permanece o Direito à Esperança, proclamado pelo Papa Francisco na celebração da Páscoa. Inteligência, consolo, sabedoria para as circunstâncias de cada homem e mulher, nas suas dores e temores, nas perguntas aos cientistas e investigadores, nas questões que inquietam e por estes dias não têm fim.

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