O Mundo tem assistido à brutal intensificação do conflito entre a Rússia e a Ucrânia.

Para além da emergência humanitária gerada nos países vizinhos para acorrer a quase um milhão de refugiados de guerra, uma onda de crescente preocupação surge com as imagens que da Ucrânia nos entram diariamente porta adentro e que demonstram uma destruição impiedosa de edifícios e infraestruturas civis.

A ONU dá conta que mais de 360 civis terão já sido mortos (25 dos quais eram crianças) e que os feridos andarão já perto de um milhar.

Por outro lado, o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) qualificou de “dilacerante” a situação que se vive em Mariopol, apelando à necessidade urgente de abrir um corredor humanitário que permita proteger os civis.

As negociações de paz entre as partes têm saído goradas – e tudo indica que tal não se alterará – como o tem sido também as tentativas de criar corredores humanitários que permitam a evacuação de civis.

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As imagens de edifícios residenciais totalmente destruídos, as notícias de hospitais atingidos por artilharia pesada russa e o relato de civis mortos por artilharia em Irpin, são sinais claros de que o princípio da distinção – pedra angular do direito internacional humanitário – não está a ser respeitado pela Rússia, evidenciando a prática de crimes de guerra (artº. 8º, nº 2 do Estatuto de Roma) da jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI).

Perante este crescendo, o Procurador do TPI manifestou já a sua intenção de abrir uma investigação.

Pese embora nenhum dos países no conflito seja parte no Estatuto de Roma do TPI, a questão da sua jurisdição estará resolvida pela aceitação que da mesma já foi feita pela Ucrânia em Fevereiro de 2015, ao abrigo do artº. 12º, nº 3 daquele estatuto, em relação aos crimes que foram praticados em solo ucraniano a partir de 20 de Fevereiro de 2014 (aceitação de jurisdição, essa que, numa segunda fase, foi feita sem limite temporal de término).

Nessa medida, e tendo em conta o estatuído no artº. 12º, nº 2 al. a) do Estatuto de Roma do TPI, este tribunal terá jurisdição sobre os crimes praticados em solo ucraniano, mesmo não sendo a Rússia parte nesse estatuto nem ter aceite a sua jurisdição.

No entanto, este facto, só por si, não torna fácil o caminho ao Procurador do TPI.

Desde logo, ele ver-se-á “a braços” com a questão da complementaridade do TPI face às jurisdições nacionais.

Ao contrário do que sucedeu com os Tribunais Penais Internacionais “ad hoc” para a Ex-Jugoslávia e para o Ruanda – que tinha jurisdição exclusiva sobre os crimes praticados nesses conflitos – o TPI é um tribunal penal cuja jurisdição só funcionará caso os tribunais nacionais não decidam investigar e punir o crime.

Nessa medida, se a Rússia decidir no futuro investigar e punir os seus militares pelos crimes cometidos em solo ucraniano, poderá fazê-lo “dentro de portas” em julgamentos encenados – algo que a história já nos demonstrou que sabe fazer tão bem (é lembrar os julgamentos do período soviético).

E se é verdade que o artº. 17º, nº 2, al. a) do Estatuto do TPI acautela na letra da lei essa possibilidade, a sua discussão prática e a sua resolução efectiva demorará, seguramente, anos a ter o seu desfecho, em prejuízo da justiça.

Por outro lado, o TPI terá muita dificuldade em investigar os crimes praticados, dificuldade, essa, que será acrescida no caso de a Rússia ganhar a guerra.

De facto, de acordo com o relatório de actividades de exame preliminar efectuado pelo Gabinete do Procurador do TPI sobre os acontecimentos ocorridos em território ucraniano após 20 de Fevereiro de 2014, foram já referidas dificuldades na investigação dos crimes então praticados.

Apesar de nesse relatório se dar conta da existência de indícios fortes da prática de crimes de guerra no leste da Ucrânia – designadamente ataques intencionais a civis, ataques a edifícios protegidos, tortura e tratamentos cruéis e desumanos ou violações -, a verdade é que nele se referem dificuldades em obter respostas à solicitação de informações das autoridades nacionais. Não obstante a Ucrânia ter prestado ao Gabinete do Procurador do TPI os esclarecimentos que lhe foram solicitados, a Rússia não prestou nenhuma das informações solicitadas.

Se pensarmos que numa potencial ocupação da Ucrânia pela Rússia – cenário que está em cima da mesa – o TPI não verá facilmente franqueado o acesso dos seus investigadores ao local da prática dos crimes de guerra e que os russos poderão destruir as evidências materiais e humanas da sua prática, adivinha-se difícil a sua investigação e punição pelo TPI.

A abertura dessa investigação é, no entanto, essencial para criar pressão sobre os criminosos de guerra – atenta a obrigação de detenção e entrega daqueles ao tribunal que resulta para os Estados Partes do Estatuto de Roma – impedindo, assim, um sentimento de total impunidade.