Tempos houve, não assim tão longínquos, onde a política se fazia de enormes princípios, tremendas opções, grandes escolhas entre alternativas com seríssimas consequências. A sociedade, dada a gravidade das questões, era chamada, fosse de uma forma mais ou menos formal, a ter uma opinião sobre os diversos assuntos, transformando-se as tascas, esplanadas e salas de estar espalhadas pelo país em verdadeiras arenas de discussão política que, reflectindo a importância das decisões a tomar e do caminho a escolher, se eriçavam em ardentes e apaixonadas tomadas de posição. As grandes ideologias, as grandes causas, os grandes princípios flamejavam nos corações de vizinhos, familiares e amigos, ou até mesmo perfeitos desconhecidos, que, de mão no peito, queixo para fora e pulmões fulgurantes, por entre gritos, berros e suspiros, quando não mesmo chegados a vias de facto, fiscalizavam, criticavam, peroravam, não deixando assim de participar, quanto mais não fosse pela discussão, nos destinos do país.

Hoje, a vida mudou. Portugal segue tranquilamente a reboque da UE, uma proto-federação político-burocrática onde o país se dissolveu voluntária e alegremente, sempre de mão estendida pelo subsídio, o PRR e o QE do BCE, isto enquanto implementa, de pin na lapela e sem qualquer discussão, a Agenda 2030 lamuriada por Guterres e propagandeada por tudo o que é ONG, activistas estilo Greta ou agências de investimentos financeiros globais “verdes”. O problema do destino político português está, portanto, para mal dos nossos pecados, resolvido. Daí que as oposições ideológicas às bases liberais e democratas do regime, se não desapareceram, então, à falta de melhor termo, aburguesaram e resignaram-se.

Na extrema-esquerda, grupelhos de fanáticos ideológicos anacrónicos e delirantes vão se cindindo, incompatibilizando, desorganizando em associações cada vez mais puras, logo mais minúsculas e irrelevantes também, isto incluindo o PCP que, moribundo, serve agora apenas para aferir a cada acto eleitoral a rapidez com que a geração de 74 vai desaparecendo. O resto, de facto, aburguesou. Desde logo, o BE que mandou Louçã, o padreco moralista anticapitalista do palanque tornado púlpito para, imagine-se, o respaldo atapetado e faustoso do Banco de Portugal onde, junto com profusas vetustas figuras do regime, agora usa o seu mais anafado traseiro para polir o couro engraxado dos sofás onde se discute a alta finança nacional. A sua sucessora, Catarina Martins, essa antiga actriz activista que exortava a que se urinasse fora do penico, foi igualmente reformada, neste caso para Bruxelas com direito a mais de 20,000 euros mensais, motorista e voo semanal em primeira classe para vir visitar o burgo ao fim-de-semana. No entretanto, e iluminando o caminho ao último resquício de activismo pseudo-feminista que por lá perdura, declarou-se o BE “social-democrata”, isto para justificar um pouco como juntar a bota, agora debruada a ouro e renda, com a perdigota que ainda se cospe e baba por Fidel, já morto, Maduro e, claro está, o santificado Ché, hoje em dia reduzido a marca copyright para impressão de t-shirts. Eleitoralmente, o caminho acelera para o abismo, o grupo parlamentar para a irrelevância, e o partido para o eterno final de todos os projectos socialistas — o endividamento e a falência.

Por aqueles lados, com algum sucesso e esperança, sobra apenas o Livre desde que o seu verdadeiro líder se livrou do simulacro de abertura inclusiva com que, por debaixo do frondoso vestido encarnado de uma mulher, convenientemente negra e gaga, bem como inconvenientemente perspireta e senhora do seu nariz, tinha posto o pé na Assembleia. Ainda assim, esta nova extrema-esquerda, apesar do moralismo neomarxista woke e irrelevante eleitoralmente, é já ela também apologista do federalismo europeísta, bem como de todas as causas internacionais que, a montante e noutras reuniões bem mais importantes, já foram igualmente explicadas como fundamentais e estruturais a toda a gente relevante no país, incluindo o Primeiro-Ministro que as repete a cada discurso.

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Aliás, do outro lado, à direita, a coisa não será, na sua essência, muito diferente. Congénere do Livre até no nome, a IL, apenas discorda, como também diz o nome, na iniciativa da coisa que esta, ao contrário do outro, prefere como privada, bem como no nível de impostos que o outro, ao contrário desta, deseja elevados. Já quanto aos desígnios e os destinos do país, como se vê na ida do deputado Cotrim para Bruxelas votar junto com Verhofstadt & Ca., a coisa não muda muito, nem sequer quanto aos novos costumes onde o proverbial antigo armário onde os LGBT se escondiam deu agora lugar a um novel roupeiro onde os conservadores de índole liberal deixam as opiniões pessoais para poder à vontade desfilar na Av. da Liberdade celebrando o arco-íris e as virtudes do orgulho gay — sem ais nem uis —, junto com o resto da orgulhosa tropa fandanga.

Mais à direita, o CDS desapareceu, tornando-se agora em agradecido apêndice do PSD, uma espécie de reedição do pacto PCP-Verdes que compunha a CDU, mas em versão coligação governamental acolitada — com vergonha e apenas por motivos legais — ainda também pelo PPM. Sobram, portanto, o PSD mascarado de AD e o Chega!. O primeiro, pela mão trémula, mas infalível, de Montenegro, aposta-se em passar pelos pingos da chuva sem chatear ninguém, ainda menos qualquer eleitor, acreditando firmemente que se repetir os slogans do Chega! — no que concerne a segurança e a imigração — e seguir as políticas económicas do PS — nas pensões, nas prestações sociais e nas contas públicas — irá acumulando apoio popular, afirmando-se paulatinamente como uma espécie de fiel seguidor das estratégias de António Costa, mas em variante competente e séria.

Já o segundo, o Chega!, esse rapidamente mostrou que a sua lógica “antissistema” não passava de linguarajar político para garantir voto à abstenção farta ou zangada com o rumo da coisa, prometendo tanto à esquerda como à direita sem grande obrigação de coerência. Ora perora, por exemplo, contra Bruxelas, ora exige mais dinheiro a Bruxelas para pagar pensões e, entre estas contradições do seu líder e militante omnipresente — Ventura —, e as promessas vãs que 50 deputados faziam acreditar — até ao momento, deram em nada, onde está a comissão de inquérito ao excesso de mortalidade anunciada na noite eleitoral, Dr. Ventura? —, o Chega! além de, tal como todos os outros, exigir mais despesa e menos receita ao Governo, vai esfumando a refundição da República numa mão cheia de nada — sem ideias, sem plano, sem estratégia, no fundo, sem alternativa salvo a politiquice do costume.

Em boa verdade, a política, apesar de efervescente no caso mediático, histérica no tom parlamentar e polarizada nas questões de costumes — às quais PSD foge com o rabo a toda e qualquer seringa, ao mesmo tempo que ministros seus se questionam sobre o que são mulheres e quem deve ter acesso a urinóis —, a verdadeira política, junto com o sistema e o equilíbrio actual, morreu. Os políticos e jornalistas portugueses, esses, largamente alienados do mundo, fechados no arrabalde lusitano e agarrados à ainda mais provinciana bolha mediática autóctone, esses, naturalmente, ainda não deram por nada. Mas é verdade, a política, e com ela o mundo político que conhecíamos, morreu.

A prova disso é a dissonância entre aquilo que se discute, e faz, e aqueloutro que representa, de facto, as diversas alternativas políticas que o país e a sociedade têm pela frente — o real problema político. No entanto, para o sistema mediático-político português estas não existem, não se discutem e menos ainda se questionam. Ora, se aquilo que importa ao país não faz parte do debate e do sistema político então, conclui-se, essa política, e esse sistema, não servem o país, não existem no mundo real, tendo morrido na sua utilidade e na sua essência, sobrando-lhes apenas agora os invólucros formais, estruturas vazias de finalidade e conteúdo, reduzidas a uma mimética e maquinal repetição de hábitos que, na medida em que representa o teatro e o institucionalismo político tradicional, parece política, mas que na realidade não o é porque não incorpora nem trata do mundo real e dos desafios que de facto assolam o país.

Que discute então o político portugês? O pormenor. A implementação burocrática da política que foi decidida a montante, ou seja, não faz verdadeiramente parte do processo político, apenas da estrutura que garante a sua fiel aplicação prática. Daí que a escolha política seja hoje em dia, não entre as grandes causas e os grandes princípios, mas entre os 0,2 e os 0,3 de deficit, os 22 e os 51 cêntimos de aumentos nas reformas ou as 10 ou 11 gramas de sal permitidas no pão integral. No fim do dia, a política, e daí que nem sequer mereça esse título, esteja reduzida na sua maior parte à economia doméstica, onde o Estado, entre subsídios e impostos, vai regulando as contas mensais, isto enquanto sugere, quando não impõe através do regulamento, o cabaz de compras, o apropriado intervalo de colesterol, os bons hábitos alimentares, de saúde e, até, o funcionamento dos níveis hormonais que, de acordo com o género e a identidade burocraticamente definidas, deverão ser afinados entre X e Y..

Nada disto, evidentemente, é política. Mesmo que tratem de políticas profundamente invasivas, totalitárias até em certos casos, o mundo político nacional reduz-se em larguíssima medida à burocracia. Aliás, é precisamente por ser apenas burocrática e não política que é totalitária, pois que se fosse política haveria como discutir, discordar e questionar. Mas estando a discussão reduzida ao detalhe e não às verdadeiras alternativas, é nesse sentido que ela, a política, morreu — e com ela se quedam ameaçadas as liberdades, direitos e garantias que caracterizam o regime político democrático e liberal, agora reduzido a este infindável processo burocrático de incremental domesticação estatal do espaço anteriormente ocupado por famílias e indivíduos.

Quais são, então, essas grandes questões que compõem as alternativas políticas e das quais nada se parece discutir ou aperceber em Portugal? Alguns exemplos, porque o espaço é curto. Desde logo a questão da própria soberania, outrora conquistada e mantida a sangue, suor e fogo. Portugal hoje não é um país soberano, nem é de esperar que o venha a ser de novo.

Dependente do crivo orçamental europeu, da boa-vontade do BCE em caso de dificuldade na obtenção de dívida e de uma genérica solidariedade dos contribuintes líquidos da UE para com o atraso crónico que 40 anos de subsídios estruturais não resolveram, a política europeia portuguesa reduz-se a tentar garantir que esses subsídios não acabem nas carteiras de outros países outrora mais atrasados que nós e que hoje em dia já nos ultrapassaram em qualidade de vida. Como dizer não a quem paga a conta? E quem explica o hercúleo esforço e a enorme dificuldade implicados no resgate dessa soberania que políticos oportunistas deitaram janela fora nos últimos anos?

Depois, a fundamental defesa dos direitos, liberdades e garantias individuais, como por exemplo a liberdade de expressão e demais direitos constitucionais, pedras fundamentais da democracia liberal e que, ao arrepio de pelo menos 23 acórdãos do Tribunal Constitucional, foram vez após vez infringidos e colocados em causa pelos poderes políticos, inclusive pelo próprio Presidente da República, sem que houvesse um clamor mediático, uma discussão séria na arena pública ou um levantamento popular massivo na defesa da liberdade política tal qual a conhecemos. Não, os direitos fundamentais infringiram-se sem discussão, pelo contrário, demonizando todos aqueles que se atreveram a rejeitar tais abusos e a denunciar os perigos que as novas políticas públicas — como por exemplo na área da liberdade de expressão — colocam ao “regular funcionamento da democracia”.

Se a discussão sobre como defender a democracia e a liberdade não faz parte da política, então o que sobra nessa discussão que seja de facto importante? Depois, a completa incapacidade de discutir as causas para além das consequências. Atente-se, por exemplo, no caso da imigração: partidos agitam-se sobre o problema imigratório, sobre a segurança, sobre valores, sobre cultura, etc., sem que haja quem diga o óbvio: apenas há um problema imigratório porque a sociedade portuguesa está em vias de extinção na medida que morrem muito mais portugueses do que aqueles que nascem. Que maior questão política poderá haver a um país do que o facto de estar a duas ou três gerações da extinção? Mas sobre este elefante no meio da sala, por alguma razão, não se fala, e o Estado que custa a cada português mais de metade do que produz e que é suposto zelar, no mínimo, pela subsistência da nossa comunidade política parece, no mínimo, alienado face a esta questão, senão apostado mesmo na nossa completa destruição.

Não, nada de estrutural se discute. As causas, as bases, o real, tudo chega ao Parlamento e ao Telejornal como adquirido. E nenhum partido apresenta estratégias séria de longo prazo sobre como resgatar Portugal da sua condição subserviente, dependente, em extinção demográfica, crescentemente não-democrática, miserável, decadente, colonizada, em que se encontra. Ainda assim, num mundo que desaparece, os mordomos do regime, tal como Anthony Hopkins em Os Despojos do Dia, parecem resignadamente apostados em que nada se passa, que amanhã será igual a hoje e que desde que cumpram pressurosamente a sua função — a do teatrinho ridículo dos burocratas que, repetindo clichés, carimbam a extinção —, no final, irá “ficar tudo bem”. Só que não, a cada dia que passa o país definha mais, quer económica, social e materialmente, mas também, e sobretudo, política, democrática e civilizacionalmente.

Assim continuando, daqui por uns anos, não restará nada.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.