Posso chamar-lhe Valentina Futuro ou António Futuro e ensaiar um tempo que há-de vir, uma espécie de compromisso com o desejo intemporal, onde se misturam as esperanças e os medos. A maternidade / paternidade é a mais poética das criações, uma dádiva alimentada pelo fogo do encontro, a flor que perfuma a viagem.
A natureza tem relógios que monitorizam a urgência da vida, é assim desde sempre, desde que a humanidade tomou conta de si e se defendeu para resistir e sobreviver. Ter filhos é um desejo natural, uma mistura de muitas emoções que transformam as vidas dos que ousam renascer com essa inspiradora criação.
A secular angústia do vazio na folha branca, antes de qualquer risco, traz-me o poema de Almada Negreiros, A Flor, “ (…) a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor ”.
Andamos, quase sempre, à procura das linhas com que se faz uma flor, sem sabermos onde colocar os riscos para que a ideia reencontre as vozes do passado que nos ensinaram. No jardim da avó, íamos colher rosas vermelhas numa roseira que cresceu encostada ao muro branco, caiado no início de cada verão. A avó Valentina podava as roseiras com o mesmo esmero com que bordava os bibes dos netos. O benjamim da família mal podia esperar pelo convite, era um ritual que misturava rosas e conversas, uma preparação para o lanche com bolinhos de manteiga, receitas portuguesas guardadas na memória.
“Depois da minha avó, foste a pessoa que melhor cuidou de mim”. A frase ainda ecoa como se as palavras andassem soltas entre a cabeça e o coração, uma qualquer revoada de pássaros ao entardecer, no reconhecimento do abrigo para se entregarem à noite. Com quase meio século de vida, ainda admite ser mãe, encontrou o companheiro que tardou, e procura “as linhas com que se faz uma flor”. A sua beleza deixa adivinhar uma grávida lindíssima, um sopro de leveza entre o pessimismo inspirador.
Os filhos do futuro são esses Antónios que chegam quando ninguém espera. O último filho do escritor Urbano Tavares Rodrigues (1923, 2013), que nasceu quando o autor, de Bastardos do Sol, tinha 82 anos. Na sua longa vida como escritor e resistente, Urbano falava do seu António: – É “o menino dos meus olhos e que faz com que eu tenha cada vez mais vontade de ficar mais tempo neste mundo”.
Os filhos transmitem essa esperança, “anunciam o futuro”, ainda que o presente seja tomado pela incerteza, principalmente, se a melancolia é um lugar dentro de nós. “Foste a pessoa que melhor cuidou de mim”, por isso, fui escolhido pelo viço poético da neta de Valentina. Misturam-se as palavras e as linhas numa composição seminal em busca da flor que seja, também, uma criança. Há-de nascer e ainda que não saibamos “que mundo será o vosso”. Jorge de Sena, na “Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya”, lembra que “É possível, tudo é possível, que ele seja / aquele que desejo para vós. Um simples mundo, / onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém / de nada haver que não seja simples e natural. “
Soltam-se os nomes das flores que “guardamos respeitosamente / em memória do sangue que nos corre nas veias”, para lembrarmos a avó Valentina e o avô António.