A nossa memória é algo de estranho. E extraordinário.

Nestes dias de máscaras caseiras, a minha memória decidiu brindar-me com recordações antigas.

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Quando eu era pequeno, era habitual haver lenços de pano. Eram quadrados de tecido que as mães nos davam, passados a ferro e muito bem dobradinhos, para guardarmos no bolso. Penso que a intenção seria que nós os usássemos, quando fosse necessário. Mas as mães geralmente zangavam-se muito quando lhos devolvíamos, cerca de meia hora depois de no-los terem entregue, amarfanhados e tão sujos que a cor original não se identificava. Por isso, com frequência, andávamos ranhosos e sujos, e limpávamos nariz e boca e cara e mãos às mangas e não aos lenços, que ficavam, dobradinhos e imaculados, nos nossos bolsos.

Isto, claro, até brincarmos aos índios e cowboys. Esse era o limite. O fim da protecção dos lenços. Eram nessa altura retirados dos bolsos, desdobrados dos seus vincos impecáveis do ferro de engomar, e novamente dobrados, agora ao meio, para formarem um triângulo, que depois era esticado sobre o nariz, perto dos olhos, e atado bem apertadinho com um nó na nuca.

Ficávamos transformados num bando de inidentificáveis meliantes juvenis, com pistolas de fulminantes (hoje em dia seguramente ilegais e confiscadas pela ASAE), cintos de balas falsas, e chapéus variados.

Deixávamos de falar de forma normal. Poderíamos fazê-lo apenas para combinar estratégias (“agora tu ias para trás da árvore e escondias-te mas eu via-te e depois matava-te, está bem?”), mas de resto comunicávamos por vozes alteradas e artificiais, como se estivéssemos a fazer (mau) teatro.

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– Ei, amigo, vamos por esta estrada, a cavalo, boa?

– Sim, amigo, vamos.

Não sei porquê, mas os nossos personagens de brincadeira nunca tinham nome próprio. Eram sempre o “amigo”, dito de uma forma estranha e com um “o” final meio anglo-saxónico, tipo “amigou”.

Corríamos pelo bairro, pelo meio dos prédios, a pé ou em bicicletas transformadas em cavalos imaginários. Escondíamo-nos entre os cactos de flor vermelha, trepávamos ao pinheiro grande do lote 7 e inventávamos gritos de chamada, sempre muito agudos.

A minha professora da primária, Senhora Dona Maria Adelaide, transmontana de cabelo em carrapito na nuca que também vivia no nosso bairro (coitada), gritava zangada da janela que abria do seu rés do chão, sem nos reconhecer graças aos lenços (abençoados!) no rosto:
– Calem-se, mas calem-se! Por amor de Deus, nem em casa tenho sossego…

E nós fugíamos do largo da C.R.G.E., com os índios na peugada.

Ao final da tarde, de volta a casa, transpirados e porcos e cheios de fome, devolvíamos às mães os lenços amarrotados, com ranho e saliva e pó e ouvíamos os ralhetes e as zangas, mansos e sem responder, a devorar o jantar e a pensar nas aventuras do “amigou” e do “amigou”.

Hoje e agora, fechados em casa pela pandemia deste vírus chamado medo, os meus pais vão comunicando com a descendência, usando as múltiplas aplicações disponíveis. É o tempo presente, longe de lenços de pano, substituídos por lenços descartáveis, em pacotes pequenos, omnipresentes nas malas das senhoras.

No outro dia, enviaram uma foto com as máscaras caseiras que a minha mãe preparou para cada um, panos esticados sobre o rosto, quais lenços dobrados dos índios e cowboys da minha infância.

E a minha memória acordou lembranças do fundo de circuitos neuronais inactivos há tanto tempo!

– Ei, amigo(u)!

Espero que eles brinquem e se divirtam tanto como eu me divertia!