No dia 1 de maio, o Observador fez a gentileza de publicar um artigo de opinião do vosso cronista com o título “A criação do primeiro rei americano.” A sempre importante chamada, sabiamente escolhida pela equipa do jornal, transcrevia parte do texto, ficando logo assim à vista do leitor: “A maioria conservadora no Supremo é agora um braço legal, a juntar a outros (político, mediático, ativista, quiçá miliciano) que parecem apostados em dar a Trump aquilo que os fundadores não queriam.”
Na opinião da maioria conservadora do Supremo Tribunal Americano, no caso Trump v. United States, publicada no dia 2 de junho de 2024, decretou que, sim, o Presidente dos Estados Unidos é agora um tipo de rei, acima da lei dos homens, e com imunidade assumida para “atos oficiais”. Ao contrário de outros funcionários federais, que podem ser acusados de crime, mesmo em funções oficiais, o Presidente pode agora mandar assassinar alguém, transmitir segredos de estado a outros países, receber um suborno para um perdão presidencial, que não pode ser investigado criminalmente. Afinal, Nixon tinha razão quando disse em 1974, “Quando um Presidente o faz, isso quer dizer que não é ilegal.”
A juíza Sotomayor escreveu na sua dissensão que “em qualquer uso de um poder oficial, o Presidente é agora um rei acima da lei”. A maioria conservadora no tribunal foi ao ponto de afirmar que esta imunidade absoluta em atos oficiais não pode ser retirada por atos legislativos. Na opinião do Supremo Tribunal, qualquer lei que proclame que o Presidente pode ser julgado por crimes é agora não constitucional. O único recurso que agora existe é que esses alegados crimes sejam avaliados em tribunais, e em última instância, no tribunal onde se sentam, se os atos podem ser, ou não, considerados como não oficiais.
Com este novo padrão, o detentor do mais alto cargo da nação pode usar um “ato oficial”, criado por si próprio, ou desde que justificado pelas entidades responsáveis (como o departamento legal da Casa Branca, ou o Departamento de Justiça, ou da Defesa, ou da Segurança Interna (Homeland Security) para cometer um crime. Por exemplo, o então Presidente Trump dizer ao então Vice-Presidente Pence para não contar os votos eleitorais e aceitar outros que eram fraudulentos é agora, na opinião do Supremo Tribunal, facilmente argumentado como incluído nessa definição, e voltamos ao início.
Porém, não ficamos por aqui. Não só “atos oficiais” não podem ser indiciados criminalmente, como não podem, sequer, ser usados como evidência de conduta criminal. Se um ato não oficial puder ser investigado criminalmente, e existirem provas para o substanciar em tribunal que resultem de um ato oficial, o segundo não pode ser usado para suportar o primeiro. Trump quis anular uma eleição? De uma forma não oficial, fez tudo o que pode para isso acontecer? Existem trocas de emails que atestam da intenção criminosa e, por exemplo, de criação de uma conspiração. Se esses emails forem “atos oficiais”, então não servem para provar a motivação, ou o modo de montar a conspiração.
Quando em 1765, as 13 colónias da América do Norte Britânica insurgiram-se contra a lei imperial, e os protestos ganharam vida devido aos impostos determinados pela monarquia britânica, a Guerra da Independência iniciou-se, terminado em 1783, e que traria um novo projeto de governação ao continente americano. A Comissão dos Cinco apresentou uma primeira versão da Declaração de Independência no Segundo Congresso Continental, que aconteceu em Filadélfia, em junho de 1776. Nesse documento podem-se ler as 27 queixas das colónias contra o Rei Jorge III, declarando certos direitos naturais e legais, onde “todos os homens são criados iguais”.
Porém, há precedentes de repúblicas que morrem na mão daqueles que se acham mais do que os outros. Quando Augusto César se declarou como um “primeiro” cidadão de Roma, ou aquando da restauração do Rei Charles II em Inglaterra, ou quando Napoleão se declarou imperador de França. Trump tem 50% de hipóteses de voltar a ser Presidente, com um “programa de presidência unitária” à sua espera (O Project 2025, que será alvo de atenção nos próximos meses neste espaço), onde a burocracia governativa servirá os interesses do Presidente, e quem não concordar, será demitido e substituído por quem o faça sem timidez ou receio (o já explicado Schedule F, onde funcionários governamentais que não sejam considerados como leais o suficiente serão substituídos por outros que o sejam).
A Juíza Sotomayor, termina o texto que deve ser lido por todos que querem entender o que está em jogo, e o que poderá vir a seguir, de uma forma ominosa: “Nunca na história da nossa República um Presidente teve razão para acreditar que estaria imune de uma investigação criminal (…) De agora em diante, no entanto, todos os antigos Presidentes estarão protegidos por essa imunidade. Se o detentor dessa posição usar erradamente os seus poderes oficiais para ganho próprio, a lei criminal, que serve para o resto de nós, não servirá de guarda. Com medo pela nossa democracia, eu dissento”. Com medo pela democracia americana, eu concordo com a Juíza.