O Código Civil português de 1967, na sua versão original – antes de ser estragado por revisões subsequentes –, é tão bem escrito que é quase literatura. Se as letras de Bob Dylan são literatura, e se o teatro é literatura, por que não um texto jurídico elegantemente redigido?
O Código Civil consagra princípios fundamentais em que devem assentar as relações humanas, que resultam da experiência prática de séculos, e que asseguram que a vida quotidiana tenha o mínimo de salubridade. Um desses princípios, consagrado no artigo 406.º do Código, é o de que os contratos devem ser cumpridos. É básico, mas este princípio implica que quem celebra um contrato deve fazê-lo de boa-fé e deve estar preocupado em cumpri-lo – há um sentido de responsabilidade associado à assunção de um compromisso. Se não for assim, a vida em sociedade torna-se inviável.
A deambulação jurídica acaba aqui. Passo agora ao primeiro‑ministro António Costa, o alvo desta crónica e uma estimada obsessão, até porque o conheci pessoalmente noutra encarnação.
Quem celebrou nos últimos anos um contrato de crédito à habitação com taxa de juro variável devia saber que a taxa iria variar, como o próprio nome indica, e que iria variar no sentido ascendente, porque descer ainda mais seria difícil. As taxas estiveram artificialmente baixas durante quase uma década, negativas até, o que é uma aberração por natureza, fruto da política de “quantitative easing” adotada pelo Banco Central Europeu, e que consistiu na prática de fabricar dinheiro massivamente. Fabricar dinheiro inevitavelmente conduz a inflação, mais cedo ou mais tarde, como se sabe de experiências históricas de hiperinflação como a da Alemanha nos anos trinta ou a do Zimbabwe mais recentemente. A inflação viria com ou sem guerra, e veio antes ainda do início da invasão da Ucrânia, por mais que Costa nos queira convencer do contrário.
Quem celebrou nos últimos anos um contrato de crédito à habitação a taxa variável não podia esperar que o indexante (ou seja, a taxa sobre a qual incide a margem de lucro da instituição de crédito que empresta) se mantivesse negativa durante trinta anos. Aliás, a FINE (“ficha de informação normalizada europeia”) informava o mutuário do valor da prestação a pagar se a taxa subisse três pontos percentuais. A subida de taxas não podia ser uma surpresa.
A ideia de “ajudar” alguém a suportar o impacto da subida das taxas, quando essa subida era inevitável e os mutuários estavam avisados, é contrariar o princípio fundamental de que os contratos são para cumprir. Pelo contrário: é criar a ideia de que, se alguém não cumprir a sua parte, os restantes contribuintes vêm ajudar; é dizer aos que optaram por taxa fixa – pagando mais todos os meses para se precaverem da subida de taxas – que foram ingénuos; é reforçar a ideia de que ser irresponsável compensa – aquilo a que em economia se designa “risco moral”; é também mais uma, entre tantas outras, forma de comprar votos, transformando (como disse noutro artigo) a política numa feira e os políticos em feirantes.