Se a publicação de um livro trinta anos depois de ter sido escrito não é um feito inédito, é, no mínimo, um feito audaz, sobretudo nas humanidades e ciências sociais. O que poderá levar um autor a decidir publicar um texto produzido em contexto universitário e dirigido a um público académico três décadas depois de ter sido escrito? Mesmo que o tema possa suscitar ainda interesse considerável na academia – o que é em si mesmo um facto invulgar – não haverá obras mais recentes que o tenham suplantado? Dito de outra forma, porquê correr o risco de editar um texto que está, à partida, desactualizado, e que poderá interessar, quando muito, a um pequeno grupo de investigadores? Pois, esta é a história de Pombal contra Roma: A Tentativa Teológica do Padre António Pereira do Figueiredo (Coimbra: Tenacitas, 2021), obra do Padre João Seabra, cónego da Sé Patriarcal de Lisboa, professor da Universidade Católica Portuguesa e reconhecido canonista, historiador, sacerdote e pregador. Ao longo destas linhas espero que fique clara a pertinência deste livro, não só no contexto da obra académica de João Seabra, mas também na situação actual.

Em Setembro de 1989, João Seabra terminou a escrita da sua tese de licenciatura em direito canónico, defendida dois anos depois na Universidade Pontifícia de Salamanca. Apesar de ter extraído desta investigação alguns artigos académicos, a tese permaneceu inédita para o grande público durante trinta anos. Incentivado pelo seu editor na Tenacitas – que lhe tinha pedido “alguma coisa para publicar” (p. 9) – João Seabra acedeu a dar à estampa o seu primeiro trabalho académico de grande envergadura. A edição de Pombal contra Roma, como João César das Neves salientou na apresentação do livro no passado dia 2 de Dezembro, complementa o trabalho de investigação realizado no âmbito do doutoramento em direito canónico pela Pontifícia Universidade Urbaniana e publicado pela Principia em 2010 com o título O Estado e a Igreja em Portugal no início do século XX: A Lei da separação de 1911. No seu conjunto, os dois livros estudam, com erudição, clareza e profundidade, as relações entre o “trono” e o “altar” desde meados do século XVIII até à Concordata de 1940. Segundo João Seabra, foi Pombal que “inaugurou a tradição administrativa dos ‘Negócios Eclesiásticos’, depois aprofundada por D. Pedro e Afonso Costa” (p. 12). Para compreender as relações entre o Estado e a Igreja nos séculos XIX e XX é, por isso, fundamental estudar, com atenção e rigor, o fenómeno do regalismo pombalino. Como se depreende ao longo do livro, o estudo da vida e obra de António Pereira de Figueiredo (1725–1797), uma das principais criaturas do Marquês de Pombal, é absolutamente incontornável. Para João Seabra, o padre Pereira – ou Pereira de Figueiredo como passou a ser conhecido depois da sua saída da Congregação do Oratório – é a “personagem mais importante,” a “mais influente e a mais simbólica” do regalismo pombalino (p. 21).

Dada a centralidade obsessiva dos ‘negócios jesuíticos’ na agenda política de Carvalho e Melo (1699–1782), não deixa de ser interessante que o estudo de Pereira de Figueiredo tenha sido sugerido pelo canonista jesuíta António Leite (1921–2004). Nascido em Mação a 14 de Fevereiro de 1725, Pereira de Figueiredo estudou latim e música no colégio dos jesuítas em Vila Viçosa entre 1736 e 1742. Depois de uma breve passagem pelo Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra (1743–1744), entrou na Congregação do Oratório, na Casa do Espírito Santo, a 24 de Setembro de 1744. Na casa do Chiado, Pereira de Figueiredo fez os seus estudos de teologia (1749–1753) e publicou o Novo Methodo da Grammatica Latina (1752), obra que o tirou da obscuridade e que gozou de considerável sucesso ao longo da sua vida. O objectivo de Pereira era suplantar De institutione grammatica (1572), a celebérrima gramática latina do jesuíta Manuel Álvares (c.1526–1583). Como é do conhecimento dos historiadores em geral, e dos historiadores da educação em particular, a gramática de Pereira de Figueiredo tornou-se, depois da expulsão dos jesuítas, a gramática oficial do reino. Os pontos de contacto com os jesuítas, contudo, não se ficaram pela “guerra das gramáticas”. À semelhança de Gabriel Malagrida, S.J. (1689–1761), Pereira também escreveu um livro sobre o terramoto de 1755: Terramoto e incendio de Lisboa de que foi testemunha ocular seu autor Antonio Pereira, padre da Congregação do Oratorio, que também o ilustrou com notas (Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1756). Os pontos de contacto entre Pereira e o último sentenciado da Inquisição, porém, não terminam aqui. A pedido de Pombal – que, recorde-se, foi quem denunciou Malagrida ao Santo Ofício – Pereira traduziu a infame sentença do tribunal para latim e acrescentou-lhe um prefácio justificativo.

Na Casa das Necessidades desde 1755, Pereira converteu-se, paulatinamente, no teólogo oficial de Carvalho e Melo. Depois do escândalo provocado pela publicação do De potestate regia [Dos poderes reais] por Inácio Ferreira de Souto em 1760 – que terminou com o encarceramento do Inquisidor Geral e do seu irmão no Buçaco durante dezassete anos – Pereira publicou De Suprema Regnum [Da suprema potestade dos reis] em 1765. Finalmente, Pombal tinha ao seu dispor uma obra que estabelecia “de maneira clara e acessível a sujeição da Igreja aos príncipes” (p. 75). Apesar de a obra regalista ter sido condenada pela Congregação do Índice em 1766, as relações entre Portugal e a Santa Sé estavam cortadas há seis anos, pelo que a proibição não surtiu efeito no nosso país. Pelo contrário, a edição desta obra valeu a Pereira a nomeação como oficial maior de línguas das Secretarias de Estado e do Reino, cargo que lhe garantia um “rendimento independente, e apreciável, que o liberta das restrições da pobreza religiosa” (p. 76). No ano seguinte, Pereira publicou a Tentativa Teológica, cuja análise constitui a segunda parte do livro.

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O teólogo oficial de Pombal interveio activamente na escrita do principal libelo antijesuíta deste período, a Dedução cronológica e analítica (1767–1768, 3 vols., 1387 páginas). É bem sabido que apesar de a obra ser atribuída a José Seabra da Silva, o marquês supervisionou os trabalhos e reviu a redacção final. Ora, segundo João Seabra, Pereira foi provavelmente o responsável pela recolha dos materiais e foi certamente o tradutor da obra para latim. Como recompensa pelos seus serviços, foi nomeado deputado da Real Mesa Censória em Abril de 1768. Neste ano, Pombal desencadeou uma campanha persecutória contra os oratorianos, encerrando-lhe as escolas e proibindo-os de ensinar. De acordo com uma carta que Pereira escreveu a um confrade seu em Goa em 1771, a rejeição interna das suas teses regalistas foi a espoleta da perseguição contra os Oratorianos (pp. 85–87). Repudiar as obras regalistas de Pereira equivalia a um crime de lesa-majestade. De acordo com João Seabra, “O raciocínio é perfeito. Quem se opõe às doutrinas teológicas de António Pereira, que Oeiras encomendou, estipendiou e propagandeou, está contra o rei” (p. 86). Em Janeiro de 1769, por ordem de Carvalho e Melo, Pereira depôs a roupeta de oratoriano: “é daqui em diante sacerdote secular do clero de Lisboa e oficialmente funcionário régio” (p. 87).

Enquanto deputado da Real Mesa Censória, Pereira interveio directamente na censura de uma obra do oratoriano Valentim de Bulhões. Este processo terminou com a prisão do seu confrade e com o encerramento da Igreja e da Casa das Necessidades. Assim permaneceram até ao afastamento de Pombal em 1777. Pereira esteve ainda envolvido na censura de uma pastoral do bispo de Coimbra, D. Miguel da Anunciação (1703–1779). Acusado de usurpar as prerrogativas da Real Mesa Censória, o bispo de Coimbra – antigo protector a quem Pereira dedicara uma obra poucos meses antes – foi conduzido ao cárcere, onde ficaria até à morte de D. José (r. 1750–1777) (p. 93). A sua actividade censória, ironicamente, não terminou com a Viradeira. A Real Mesa foi extinta em 1787, mas Figueiredo transitou para o órgão que lhe sucedeu, a Mesa da Comissão Geral do Exame e Censura dos Livros (p. 96). Continuava, pois, funcionário régio.

Em 1785, isto é oito anos depois da sua reabertura, Pereira regressou à Casa das Necessidades, onde viveu até à sua morte em 1797. João Seabra argumenta que o regresso só foi possível porque Pombal já tinha morrido há três anos e os principais oratorianos perseguidos continuavam exilados. As contradições do ex-oratoriano, porém, não terminaram aqui. No seu leito de morte, pediu a readmissão na Congregação do Oratório. O pedido foi feito no dia 10 de Agosto e aceite no dia seguinte. Morreu a 12 de Agosto com o hábito que usara durante vinte e cinco anos, e que renegara durante outros dezoito (pp. 124–125).

Na segunda parte do livro, João Seabra dedica-se à análise da Tentativa Teológica, obra regalista de Pereira publicada em 1766. Entre outras coisas, o autor desmonta, com habilidade e sapiência a tese de que Pereira era um erudito, “um conhecedor formidável da antiguidade cristã” (p. 178). Além de demonstrar a utilização muito reduzida de fontes primárias, nomeadamente bíblicas e patrísticas, Seabra disseca a insinuação de Pereira de que teria sido plagiado por Febrónio, pseudónimo do bispo alemão Johann Nikolaus von Hontheim (1701–1790). A cronologia não deixa margem para dúvidas. O livro de Pereira foi publicado três anos depois do livro de Febrónio; e Pereira, que conhece a obra, “repete todas as suas teses, menos uma” (pp. 188–189). Em teoria, a Tentativa Teológica foi escrita com o objectivo de resolver o problema das dispensas matrimoniais nos graus reservados à Santa Sé, num período de relações diplomáticas rompidas. Mas o alcance e o verdadeiro objectivo da obra são muito mais amplos. A Tentativa Teológica é, acima de tudo, o compêndio teórico do regalismo pombalino. Nas palavras de João Seabra, “o regalismo do século XVIII não é apenas a evolução de um problema antigo, a manifestação tardia do cesaropapismo. Chame-se josefinismo, febronianismo, galicanismo, jansenismo político, ao nível teológico manifesta uma protestantização do catolicismo, uma vitória tardia dos reformadores, ao nível filosófico manifesta uma secularização do Estado, uma vitória antecipada da revolução” (p. 280).

Pombal contra Roma é um livro de grande erudição que revela um trabalho exaustivo e meticuloso, tanto na reconstrução da vida e obra de António Pereira de Figueiredo como no estudo da Tentativa Teológica. O estudo da Tentativa Teológica, e a sua integração no contexto alargado das discussões acesas sobre justificação que opuseram católicos e protestantes, jesuítas e dominicanos e, mais tarde, jesuítas e jansenistas, é da maior importância para a história da Igreja nos séculos XVI a XVIII. A compreensão do fenómeno do regalismo pombalino, a partir de uma das suas maiores figuras, é particularmente bem-vinda num tempo em que se discutem, por outra razões, os limites do poder estatal, os princípios de separação de poderes, e os efeitos nefastos da coerção intelectual e do pensamento único.