A complexidade da pessoa resultava da força do seu carácter, o fascínio vinha do íman da palavra, da sua capacidade de comunicação. Alavancado numa Fé inabalável e numa erudição teológica de solidez pétrea, iluminou com eficácia ímpar a vida de milhares e milhares de pessoas ao longo dos seus 80 anos de vida.

Padre António Vaz Pinto: uma vida para Deus com ele

Era particularmente curiosa a mescla da personalidade. Aliava a sua humanidade comum (sentido de humor, por vezes contundente, aliado ao prazer do bom prato e da boa pinga) a um humanismo inspirador, traduzido nos anos 90 como mola para o arranque de obras de solidariedade social de enorme alcance. Por outro lado, associava a autoria de livros de teor espiritual de enorme profundidade, ao memorialismo, este em dois textos publicados pela Editora Alêtheia, intitulados a “A História de Deus comigo” (o segundo sendo de uma graça, espontaneidade e leveza inesperadas) a um total desinteresse pelas importâncias mundanas que a sociedade civil lhe trouxe, sobretudo quando exerceu de forma exemplar as funções de Alto Comissário para as Migrações e Minorias Étnicas, o que levou Jorge Sampaio a condecorá-lo com a Grande Ordem do Infante D. Henrique, tema sobre o qual nunca lhe ouvi uma palavra.

Era particularmente curiosa a forma como se abalançava a cada um dos seus Projectos. Foi sempre com empenho, determinação e, que se saiba, com êxitos sucessivos. E, uma vez que cada um passava a funcionar, transitava para o próximo, sem nunca mais referir o anterior.

Numa ocasião em que ele estava a viver no Porto na Residência Jesuíta da Rua Nossa Senhora de Fátima, fui buscar este Amigo de uma vida pelas 20 horas, para jantar. A Residência, que eu conhecia de sempre, era recolhida, silenciosa. Tem uma entrada pela Rua Oliveira Monteiro que, nesse dia, enquanto o aguardava no passeio, parecia estar em festa. Assisti a uma multidão de jovens a entrar e a sair, alegres, esfusiantes. Intrigado, abordei um grupo para perceber o que é que se passava. Foi fascinado que escutei o relato entusiasta da razão do tumulto daquela juventude: o CREU, Centro de Reflexão e Encontro Universitário Ignacio de Loyola, escola Jesuíta de Fé e de encontro para universitários, e Famílias, crentes e não crentes, fundada nos anos 90. Quem foi a mola de arranque neste Projecto que não para de crescer? António Vaz Pinto, que aí semeou uma nova alegria de viver para milhares de jovens universitários.

Ingressámos na Faculdade de Direito de Lisboa no mesmo ano de 1960, e desde então ficámos amigos. Deixou-a no 4º ano para ingressar no Seminário de Soutelo em Braga. Nos anos da Faculdade, graças a António Vaz Pinto, alguns dos bairros mais desfavorecidos de Lisboa, como a Musgueira e a Quinta da Calçada, encontraram o ombro esperançoso em muitos jovens universitários que, por seu lado, descobriram o significado da sua responsabilidade social para toda uma vida.

E antes do CREU surgiu o ambicioso CUPAV, Centro Universitário Padre António Vieira, em Lisboa, onde nasceu o Banco Alimentar numa reunião de umas nove pessoas convocadas pelo Padre António e seu irmão, o Comandante José Vaz Pinto. E lá emergiram muitos outros Projectos de enorme alcance social. A alguns fiquei ligado desde o início, pois em 91, numa visita a Lisboa, já para aqui me instalar no ano seguinte, após quase trinta anos fora de Portugal, ele foi enfático: “tens de pagar o imposto de ausência !”.

E do CUPAV, CREU, etc, passou para outros Projectos em Coimbra, em Braga, Póvoa do Varzim, Lisboa e Évora, tal como tão bem descreve o Comunicado da Companhia de Jesus, emitido aos media logo após o seu falecimento.

Era um comunicador de invulgar clareza, fluência e transparência. Por um lado, possuía um timbre de voz perfeito, e era mestre nas pausas, na “petite histoire” e na anedota oportuna, que traziam frescura e estimulavam a atenção da audiência. Era dotado também de um body langauage , uma linguagem corporal, que trazia empatia a quem o via e ouvia, sempre com uma informalidade e um à-vontade pouco comuns entre Padres, qualidades que suponho resultavam do saudável universo familiar em que foi educado.

Graças a essas características, à sua riquíssima cultura teológica (adquirida na Alemanha ao lado de Joseph Ratzinger, mais tarde Papa Bento XVI), e à sua inteligência, tornou-se poderoso e envolvente nos conteúdos que transmitia quando falava, fosse nas suas homilias, fosse nos Exercícios Espirituais que conduzia com brilho, fosse nas conferências, debates e ciclos de estudo em que participava. Um capital pouco comum e valiosíssimo que poderia ter sido aplicado através dos eficacíssimos novos meios telemáticos.

António Vaz Pinto era por alguns equiparado a Robert Barron, Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Los Angeles, nos EUA (recém-nomeado Bispo de uma Diocese no Wisconsin), cujas comunicações em plataformas sob a designação Word on Fire, no YouTube, Podcasts, Facebook, Twitter, e televisão, tem milhões de seguidores em todo o mundo. Aliás como Fulton Sheen que na rádio e TV americanas nos anos 50 e 60 teve 30 milhões de pessoas a ver/ouvir em directo, o que o levou a ganhar um EMMY Award em 1952 como personagem televisivo do ano. Faleceu há pouco outro dos grandes comunicadores da Igreja Católica portuguesa, o Padre João Seabra. Infelizmente, nem o Padre Vaz Pinto, nem o Padre Seabra, chegaram a utilizar os meios evangelizadores exemplificados pelos dois americanos referidos.

Na realidade, o Padre António Vaz Pinto era um despojado, uma virtude teologal que pregava com veemência. Era um dos temas de grande debate, pois tinha de ouvir aqueles para quem, apesar de possuírem bens de valor irrelevante, ou outros que nem tanto, esses bens representam passos de vida onde todos vamos encontrando luzes e sombras, e que testemunham o valor e o milagre da existência humana nesta terra. Os livros, por exemplo. Sobre esses, um alfarrabista disse-me há pouco tempo que, apesar de o conjunto ter “alma”, ela é mortal, a biblioteca morre com cada um que a constrói. Aí, o despojamento do Padre António vacilava….  E assim, a questão da graduação do “abandonar tudo” ou “abandonar muito, pouco ou nada” era conversada de forma complexa, em que muitos dos que o seguiam acabavam por reconhecer, não sem dificuldade, a banalidade incontornável do apego aos bens materiais, por poucos que sejam.

António Vaz Pinto foi um bálsamo para a vida “civil” de milhares de pessoas, sujeitas a terramotos exteriores e interiores que palpitam, não param, e a quem ele trouxe o amparo para uma existência espiritual mais esperançosa.

O seu horizonte decisivo chegou antes de integralmente cumprido o seu tempo. Mas todos os que o conheceram, sabem que agora o seu horizonte passou a um infinito sublime. Antes e agora, um “influencer” incontestável e incontornável.

O difícil espaço que o António Vaz Pinto deixa vazio entre os que cá ficam, e lhe eram próximos, acaba por constituir um legado de Esperança que ele soube transmitir a tanta gente, que nunca o esquecerá. Nestes últimos tempos tive a sorte de poder manter com ele horas de conversa, nunca o vira tão brilhante. Recentemente, em Évora, encontrei-lhe a alegria de viver que sempre teve e sempre conseguiu transmitir. Num longo telefonema a convidar-me para a festa dos 80 anos no passado dia 3 de Junho (a q não pude assistir pois estava na Alemanha), mais uma vez a sua vivacidade ficou manifesta, não dando sinal de qualquer moléstia. Mas a sentença de morte ficou ditada três dias depois, e partiu ontem, dia 1 de Julho. Para além do inspirador que foi em tantas ocasiões para tantos, era um amigo genuíno, quantas vezes saudavelmente abrasivo.

Era o verdadeiro “influencer”.

Nota: Cerimónias fúnebres: no sábado, dia 2, Coimbra, 18 h, na Sé Nova, e Lisboa, 19 h, S. Roque. No domingo, dia 3: Porto, 12.15, Nossa Senhora de Fátima e 19 h, Cedofeita; Évora, 19.30, Nossa Senhora do Carmo; em Lisboa, 21.30, corpo presente, Colégio S. João de Brito. Na segunda-feira, 4 de Julho, às 10 da manhã, será celebrada Missa de Exéquias na Igreja do Colégio S. João de Brito, em Lisboa, indo de seguida o corpo a sepultar no Cemitério do Lumiar.

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