Por uma questão de transparência e honestidade, no que diz respeito a este assunto, sinto-me na obrigação de fazer uma declaração de conflito de interesses: sou doente oncológico, com um cancro estádio IV, cujo prognóstico é bastante reservado. No meu caso, não é possível uma cura. É apenas possível uma tentativa de controlo e supressão temporária das manifestações mais agressivos da doença com o objectivo de me dar qualidade de vida durante o maior período de tempo. Em todo o caso, a hipótese do desfecho do meu caso clínico não ser a morte é bastante diminuta. Em suma, estou sob cuidados paliativos. Neste momento é tudo, apenas e só, uma questão de tempo. Tenho 30 anos.
Contrário àquilo que me parece ser a crença dos críticos mais ferozes do SNS, confesso que não tenho qualquer razão de queixa em relação ao IPO Lisboa, onde sou acompanhado desde Agosto de 2017. Do instituto em questão — e principalmente das equipas de profissionais de saúde com que me cruzei — não tenho nada se não coisas boas a dizer. A forma humana, heróica e incansável como tratam os seus doentes deve ser exaltada.
Por uma questão de foco, sempre que falar em escolher a eutanásia, vou assumir as condições base que julgo serem transversais a todos os projectos-lei em debate. Ou seja, que só resultará na prática de eutanásia um pedido, para tal, por parte de um doente maior de idade, em posse das suas faculdades mentais, em dor e sofrimento e que padeça de doença ou lesão sem hipótese de cura e fatal.
A questão do princípio da autodeterminação surge-me simples, apesar de ser a questão responsável pela clivagem entres aqueles que se manifestam a favor e aqueles que se manifestam contra a legalização da eutanásia, no abstracto. Percebo as diferenças, mas reconheço o debate sobre as diferenças entre eutanásia activa, eutanásia passiva e suicídio assistido como um debate secundário. Sobre as especificidades técnicas não reconheço em mim quaisquer qualificações para tecer uma opinião. Em todo o caso, esses são debates secundários na medida em que só faz sentido tê-los a partir do momento em que decidirmos, enquanto sociedade, que queremos dar ao doente em sofrimento e sem hipótese de cura o direito de escolher a morte medicamente assistida.
A autodeterminação, neste caso, pressupõe uma escolha individual que é apenas e só isso: uma escolha individual e pessoal. A minha escolha em nada invalida ou força a escolha a terceiros. É minha, com todo o egoísmo que daí advém. Escolher morrer não implica a morte de mais ninguém para além da minha morte. Escolher morrer não retira a ninguém a hipótese de escolher não morrer. É uma escolha que não deve, nem pode, ser limitada por terceiros, nem por construções ideológicas, doutrinárias e, sobretudo, religiosas. É uma escolha que se quer impermeável a tudo o que não pertença ao íntimo de quem a toma.
Aqueles que são contra a eutanásia limitam-me sem que eu lhes conceda autorização para tal. Tacitamente, estão a impor-me uma série de ideologias e valores que não vão, de todo, ao encontro dos meus. Em oposição a isso, ter a liberdade de escolha em nada limita, impede ou restringe a liberdade de outros de não escolher o mesmo que eu. É simples e é bonito: mais liberdade e autodeterminação para uns não implica menos liberdade para outros.
Não nego que a questão é deveras complexa. É uma questão complexa por estar intimamente ligada à multiplicidade de orientações morais existentes. Não obstante, é uma questão íntima e individual, que só a quem faz a escolha diz respeito.
Quem opta por pôr em contraponto os cuidados paliativos e a eutanásia não o faz honestamente. Não são ideias mutuamente exclusivas, de todo. Haver a hipótese de escolher a eutanásia não impede, nem pode impedir, um reforço e um investimento no que aos cuidados paliativos diz respeito. Ambos merecem ser tidos em pé de igualdade, a todos os níveis, reconhecendo assim que devem ser ambos alternativas viáveis e passíveis de dar resposta à infindável multitude de casos, necessidades e escolhas dos doentes. Não deveria ser possível conceber um SNS que não dá a melhor resposta aos seus utentes, independentemente do que é, na prática, essa resposta. Acrescentar uma hipótese não significa menosprezo pelas hipóteses existentes.
Ainda assim, e mesmo imaginando um cenário hipotético em que tenho ao meu dispor os melhores cuidados paliativos possíveis de serem fornecidos pela ciência e medicina, vou querer ter a hipótese de escolher a eutanásia. Infelizmente, e apesar da vasta experiência em corredores do IPO Lisboa, mesmo conhecendo o instituto quase tão bem como a palma das minhas mãos, mesmo sendo sempre tão bem tratado e recebido, nunca fui capaz de romantizar o tempo que passei em corredores, marquesas e camas de hospital.
Ser doente crónico, com um prognóstico reservado, não é uma realidade confortável para o espírito e para o corpo, por mais cuidados paliativos que me ponham em cima. Sou, por isso, incapaz de elevar a dor e o sofrimento à qualidade de virtudes. Essa incapacidade leva-me a não conseguir encontrar dignidade numa morte que se prevê, tudo aponta, sofrida, com dor e numa cama de hospital, alimentado a morfina e soro fisiológico, longe da realidade comum dos demais da minha idade.
Compreendo que a noção de dignidade na morte é tão plural e plástica quanto as noções de dor e sofrimento, e talvez para muita gente até andem de mão dadas. Não é errado, não é certo; é o que é. A minha noção de dignidade na morte anda de mãos dadas com o conforto e rapidez, longe da dor e de um cenário que me restrinja e impeça de ser eu, em toda a plenitude. Por isso, em boa verdade, quero somente o conforto da compaixão e a humanidade da liberdade de poder escolher a altura da minha morte.
É somente essa liberdade que reclamo. É somente isso que peço: que me deixem fazer uma escolha que só a mim diz respeito. Que me deixem escolher morrer, com conforto, com a minha noção de dignidade e em paz, se assim o quiser.