A aprendizagem faz-se interpessoalmente. O Outro é requerido para o desenvolvimento individual e a qualidade da sua prestação de cuidados, etologicamente, permite a sobrevivência da espécie. Instintivamente, sabe-o o recém-nascido, ao sinalizar o desconforto (por exemplo, choro) à figura prestadora de cuidados ante a ameaça percebida (por exemplo, fome), na expectativa de que sejam satisfeitas as suas necessidades.
O valor próprio é, assim, pelo Outro atribuído. Pelo quão está disponível para atender às necessidades, mostrando serem legítimas. Ou não. Pelo quão é capaz de as reconhecer, mostrando importar. Ou não. Pelo quão bem lhes responde, aportando segurança e homeostasia. Ou não. De modo consistente, entre situações e ao longo do tempo. Ou não. O Outro é assim visto como confiável. Ou não. O Mundo como seguro. Ou não.
À consistência na prestação de cuidados, pautada pela disponibilidade, sensibilidade e responsividade, associa-se um desenvolvimento ao longo do ciclo vital tido como adaptativo e promotor de bem-estar, em antítese ao resultado expectável de desadaptação associado à desajustada, inconsistente, negligente ou absente prestação de cuidados.
O Estado apresenta-se aos cidadãos como a figura prestadora de cuidados. No garante da salvaguarda dos direitos básicos do Ser Humano, as suas altas figuras deveriam apresentar-se como disponíveis; sensíveis à informação que de múltiplas fontes recolhem, anteverem a ameaça, organizando os variados recursos de que dispõem para lhe fazer face. De modo consistente, o desenvolvimento dos cidadãos, como um todo, far-se-ia de modo adaptativo, promovendo autonomia. Se a sua acção for pautada como desajustada, inconsistente, negligente ou absente, coartá-lo-á. E os cidadãos aprendem. Não estarem salvaguardados os seus direitos básicos. Não ser antevista a ameaça. Não serem organizados os recursos disponíveis a fazer-lhes face. Que as suas necessidades não são percebidas como legítimas. Que o valor que lhes é atribuído é diminuto. Que as figuras prestadoras de cuidados não são confiáveis. Que a insegurança prevalece.
A crítica das altas figuras do Estado aos cidadãos de dessensibilização ante a realidade designa-se por inversão de papel. É pervasivo. Porque ausente de empatia. Confusional, tornando ambígua a prestação de cuidados e a comunicação. Em plena crise sanitária, agudiza-a. Física e mentalmente.
O Jorge Palma canta-o: “Tradições, atrás de contradições, fizeram-te abrir os olhos.” (Fizeram, de facto?) Podes, na inconsistência, dizer quem és?
A mudança desenvolvimental é possível. Porque a aprendizagem e o desenvolvimento se faz interpessoalmente, o estabelecimento de relações com novas figuras prestadoras de cuidados, que se assumam como real garante dos direitos básicos do Ser Humano, efectivamente disponíveis, manifestamente sensíveis e prontamente responsivas, contribuem para processos de descontinuidade positiva, passíveis de rever o valor próprio, a confiabilidade do outro, a segurança do mundo. Para que possas dizer quem és.