Parecendo um contrassenso, aquilo que mais une os seres humanos é exactamente o que os distingue. Todos somos diferentes uns dos outros, sendo a diferença e a especificidade que dela resulta a característica mais identitária de cada pessoa. Isto ajuda a explicar porque é tão difícil distinguir o “normal” daquilo que “não é normal” e, por isso, patológico.

Vem este pensamento a propósito das normalidades e novas normalidades em tempos de pandemia. Diz-se que o nosso normal mudou e/ou terá de mudar e que precisamos de nos habituar a um novo normal. O que não se diz, pelo menos tantas vezes, é que esse novo normal não pode ser o mesmo para todos, e que a forma, a capacidade e a velocidade de cada um para fazer essa transição e mudança não é, seguramente, a mesma.

Na verdade, quando alguém se sente forçado a mudar, motivado por fatores externos, o mais comum é que lhe resista, procurando razões para evitar a necessidade de mudança. Razões que lhe permita sentir-se certo e seguro, algo fundamental, particularmente em tempos de incerteza e mudança.

Não gostar de estar errado é outra característica que nos une enquanto seres humanos. Num mundo que rapidamente se tornou altamente tecnológico e com informação (e acesso a ela) abundante, poderia parecer difícil encontrarmos razões e respostas fora da ciência. Se assim fosse, tenderíamos a caminhar todos na mesma direção e, por mais difícil e demorado que fosse ensinar ciência, dirigir-nos-íamos para um consenso global sobre o que estaria certo ou errado, ainda que dentro dos limites da dúvida científica. Contudo, além de estarmos longe disso, nada faz prever que esse seja um objetivo a concretizar até porque a diversidade desafia, constrói e desenvolve, aliando-se à capacidade das pessoas de actuarem em conjunto, tornando viável a vida humana, e de partilharem os conhecimentos entre si, como grandes riquezas e desafios da nossa vida em comum.

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Mas, se é então claro, que precisamos da diferença e da diversidade para viver, não deveria ser esta nossa necessidade e característica incompatível com fundamentalismos, sejam eles científicos ou religiosos, políticos ou ideológicos? E, neste quadro, como podemos responder à necessidade de segurança que todos temos provocada pela propalada necessidade de mudança e adaptação a novos normais?

Não raras vezes, o último argumento de alguém que afirma ser-lhe impossível mudar é um definitivo “eu sempre fui assim”! A pessoa, nessa circunstância, nem precisa de estar certa, trocando aceitar que está ou pode estar errada, pela impossibilidade da mudança e pela normalização dessa incapacidade de mudar. Também não raras vezes, nessa circunstância, a pessoa não tem argumentos para contrariar as razões que lhe são apontadas mas, não conseguindo mudar, defende-se com este imutável argumento (“eu sempre fui assim!”) para não lhe restar a insegurança que decorreria da incoerência.

Este exemplo, que todos já experimentamos em pessoas próximas, demonstra claramente que o nosso conhecimento se mistura com as nossas crenças, experiências e hábitos culturais, que fazem parte e constroem os nossos grupos e comunidades, maiores ou mais pequenas. Também, por isso, são tão difíceis de alterar sem sofrimento e perda. Também, por isso, são por vezes defendidos de forma quase tribal, com pouca razoabilidade e, muitas vezes, afirmados por oposição ou mesmo confronto face a crenças, experiências ou hábitos culturais distintos. Mudar as nossas razões, assumindo que não estávamos certos, pode implicar cortes sérios com o nosso passado e com as nossas relações, muitas vezes nas mais fundamentais. Tal é compreensivelmente difícil e, porque influenciado pelas nossas condições psicológicas (auto-estima, por exemplo) e sócio-económicas (dependência, por exemplo), nem todos poderemos conseguir. Neste processo, literacia e informação são importantes e primeiros passos para uma narrativa tendente à mudança, mas não são, por si ,suficientes e por vezes podem até ser contraproducentes ao processo de mudança.

Quando procuramos informação, tendemos a procurá-la no sentido de confirmar as nossas crenças, as nossas razões. E quanto mais informação procuramos, mais achamos que sabemos, algo muitas vezes ilusório. Apesar do acesso rápido, aprendemos muito pouco a partir da informação e temos, geralmente, pouca capacidade para armazenar informação “solta”, não enquadrada. Para que a informação tenha impacto a médio e longo prazo (nas mudanças), é necessário que ela passe a fazer parte de nós, que seja integrada na nossa história, na nossa prática, no fundo, na nossa vida. Veja-se o exemplo, hoje particularmente comum, da pessoa que vai procurar factos sobre a sua potencial doença antes da consulta com o seu médico. Quando perante o médico, essa pessoa nada mais sabe do que outra pessoa que antes da consulta não procurou informação, mas acredita que sabe muito mais, torna a consulta mais difícil para o médico e pode, no limite, ser contraproducente para si. É a ilusão do conhecimento, que decorre da procura de informação sem experiência e integração. Ao contrário do conhecimento do médico, com experiência vivida no seu trabalho e partilha de conhecimento com colegas e outros profissionais. O conhecimento daqui resulta e a mudança terá que passar por aqui.

O momento desafiante e incerto que a pandemia nos trouxe, deve permitir-nos uma reflexão mais profunda sobre o desenvolvimento das pessoas e a promoção de condições psicológicas e sócio-económicas que permitam e ajudem as pessoas na adaptação e mudança perante razões não razoáveis e acontecimentos de vida significativos (não apenas uma pandemia, mas uma perda, um divórcio, uma doença, uma situação de desemprego). Deve também suscitar uma reflexão sobre como se transmite a informação e como ela deve ser segmentada e adaptada às pessoas a quem se dirige. Se assim for, teremos pessoas e comunidades mais resilientes e com mais informação. Teremos mais literacia, saúde psicológica e prevenção. Teremos menos desinformação, desigualdade, sofrimento, doença mental e estigma.

Miguel Ricou é professor e investigador na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto/CINTESIS (na área da bioética) e presidente da Comissão de Ética da Ordem dos Psicólogos Portugueses; Tiago Pereira é coordenador do Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Psicólogos Portugueses.