“Antecipar o que acontecerá para depois explicar o que não aconteceu”, assim se referia Churchill à arte da previsão. Quando passam 50 dias do primeiro doente covid-19 confirmado em Portugal, convidamo-lo a refletir como no início de março perspetivava os dias que agora vivemos e como perspetiva, neste momento, o próximo 10 de junho. Mudança, volatilidade e incerteza são marcas que cremos coletivas destes nossos 100 dias e que imaginamos presentes na sua reflexão.

Muito mudou muito rápido. Muito continuará a mudar, avolumando e tornando prolongado no tempo o enorme desafio com que nos confrontamos. Perdemos e perderemos bastante. No nosso modo de viver, na economia e emprego, na nossa saúde física e, especialmente, psicológica. Mas não apenas perdemos e perderemos. Resilientes e adaptativos que somos como indivíduos e como comunidade, rapidamente nos unimos em torno dos recursos individuais e coletivos que melhor nos podem proteger e ajudar, demonstrando uma vez mais o que é claro para a evidência científica e pouco claro para algumas opiniões. Não é o pânico generalizado que emerge em situações como as que vivemos, antes comportamentos pró-saúde e pró-sociais, de cuidado connosco, com os outros e como comunidade, acompanhados de manifestações de solidariedade e cooperação. Assistimos ainda a um positivo retomar da valorização de profissões e profissionais (jornalistas, forças de segurança, professores ou profissionais de saúde), das suas associações representativas (associações profissionais ou sindicatos) e da ciência (comportamental, económica ou da saúde).

Sempre existiu no mundo quem explorasse medos, expectativas e sonhos dos outros. Sempre existiram vendedores de banha da cobra e de loções milagrosas que resolviam todos os problemas. Sempre existiu quem lucrasse com a manipulação dos outros e se aproveitasse da sua necessidade de acreditar em algo. Nada disso acabou, mas tem vindo a transformar-se. Nos últimos anos, caminhamos de “curandeiros” (que continuam a existir em algumas sociedades, onde, como seria de esperar, logo se descobriram variadas e miraculosas soluções simples para a covid-19) para “curandices”, a partir de personalidades carismáticas que conseguem fazer do placebo tratamentos milagrosos, vendidos como valiosos segredos de vida. Desde alguns tipos de coaches e outros especialistas com termos anglófonos, com a indução de uma ligação propositada à psicologia, até “terapeutas”, com enorme diversidade, cujos pontos comuns são as intervenções não baseadas na prova científica e a não regulação das suas atividades.

Paralelamente, assistimos à forte pressão da União Europeia, em conjunto com outros países, para a liberalização dos atos das profissões de saúde, atendendo mais a razões económicas e de mercado do que à proteção dos cidadãos ou da saúde publica. O alicerce dessa pressão é o pressuposto de respeito pela auto-determinação individual assente num também pressuposto de ampla literacia para as questões de saúde dos cidadãos. Um pouco como se todas as pessoas tomassem todas as suas decisões de forma informada, ponderada e totalmente consciente. Como se o papel dos intervenientes atrás descrito não fosse exatamente o de manipular as dificuldades, expetativas e crenças de cada um, vendendo soluções fáceis e mágicas para problemas complexos, tendo em vista objetivos que, não raras vezes, não são o melhor interesse de cada pessoa ou a saúde pública.

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A sociedade existe em função da necessidade de nos apoiarmos uns aos outros face à complexidade dos seus desafios. O papel dos profissionais e das profissões é esse, o de apoiar ou orientar as pessoas nas suas decisões. O seu valor central é promover o bem das pessoas com quem trabalham, não podendo ser apenas o mercado e o lucro as prioridades do seu exercício profissional. Esse será sempre, aliás, o papel primordial das associações profissionais: garantir que o exercício profissional vai no sentido de promover o interesse público, compromisso esse estabelecido com o Estado e condição central para a sua existência.

E porque ninguém consegue, sozinho, tomar as melhores decisões (na saúde, justiça ou no desenho de uma futura habitação), precisamos uns dos outros, e sobretudo precisamos de confiar uns nos outros. Esta pandemia, com todo o seu lado negativo, tem tido um retorno positivo no reforço da confiança nos profissionais. Vemos as pessoas mais próximas dos professores, dos médicos, enfermeiros e farmacêuticos, dos agentes da autoridade, dos bombeiros e até dos políticos. Vemos o reconhecimento da importância da psicologia e dos psicólogos. E vemo-lo quando mais disso necessitamos, numa situação onde não há certezas, muitas vezes nem certos e errados claramente definidos, e em que urgem decisões informadas e plurais, construídas colegialmente por quem reconhece dúvida e por isso está disponível para discutir com outros. Aliás, desconfiemos, portanto, quem nunca tem dúvidas.

António Costa disse recentemente que “os políticos têm de evitar que a sua vontade se sobreponha ao conhecimento da ciência, precipitando decisões de que depois se arrependam”. Invistamos, portanto, na ciência, na sua valorização e transferibilidade. Nos profissionais e nas suas organizações representativas. Que sejam suporte sólido, sério e confiável para que os Antónios de cada país e de cada momento encontrem os seus kairos (momento oportuno) nas decisões, algo que cidadãos, na procura de segurança, estão agora a fazer. Se assim for, estaremos sempre mais próximos de com menos perda, iniquidade e sofrimento vencermos desafios, epidemias e pandemias diversas. Os desafios destes 100 dias e os múltiplos e também exigentes dos dias que se lhes seguirão.

Miguel Ricou – Investigador do CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, na área da Bioética; Professor Auxiliar na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; Presidente da Comissão de Ética da Ordem dos Psicólogos Portugueses

Tiago Pereira – Coordenador do Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Psicólogos Portugueses