António tecla de forma abrupta e nervosa na manhã encoberta, os olhos estão quebrados e a pele macilenta. Está focado no ecrã, com a cabeça distante e vaga. O trabalho não preenche o vazio da partida da mãe, há pouco mais de 3 meses. À sua volta a exigência continua igual, feroz e sem compadecimento. Muitas lágrimas contidas e mágoas sem tempo e lugar para se dissolverem porque há objetivos, prazos para cumprir, obrigações que parecem iminentes. Passaram os dias das palmadinhas nas costas, dos sentimentos e pêsames, os 5 dias de licença em que se espera que a dor cure, uma mão pequena para remoer a perda, das mais duras que a vida tem. Voltar como se nada tivesse acontecido, saltar para o comboio em andamento, que não abranda nem descarrila. Se quiser chorar que o faça em casa, porque no emprego não é para carpir desgraças.

No horizonte o mar é muito azul e cristalino, mas um infinito de questões debatem-se sobre Júlia. Ainda há um mês estava confinada no seu minúsculo apartamento na baixa com um exótico persa tricolor aos pés, numa tentativa desenfreada em esvaziar a infindável caixa de correio electrónico e estar minimamente decente nas vídeo chamadas. Agora, aqui temos a menina de Braga, a tentar conter no peito a paz que a embrulha e na retina a paisagem deslumbrante de Samiu. No final de cada ciclo de sete anos, os antigos Hebreus suspendiam os trabalhos do campo, não pagavam tributos e não cobravam dívidas. Faz-lhe tanto sentido e sentimento, algo que não estava capaz de gerir. Quando disse que ia parar, fazer um ano sabático e viajar pela Ásia, soaram alarmes de todas as latitudes, os pais lançavam-lhe olhares de desilusão, os amigos espetaram-lhe com conselhos e suspeições. A multinacional para a qual trabalha, deu sinais de aceitação, mas no fundo desconfia que no regresso, se este existir, as consequências serão espelhadas em gráficos de produtividade.  Ela só queria emergir, livrar-se dos pesos que a estavam a levar ao fundo, ao breu profundo de um burnout. A carreira em ascensão, o crédito em crescendo, relações desastrosas e sufocantes, os sorrisos perfeitos das redes sociais.

Parar é cada vez mais um verbo sem futuro, está em modo imperativo. Conjugado de forma irregular, em soluços e inquietação. Parar é confessar as nossas fraquezas, deixar de sermos modernos e cosmopolitas para nos assumirmos como eremitas, saloios anti-sociais, ou pior, inúteis.  A decisão de vivermos devagar, de respeitarmos a cura, se necessário colocarmos a alma em recobro, é um luxo que nem mesmo o dinheiro alcança. Tens que continuar, tens que ser, tens que fazer, tens de estar, não tens nada e estás vazio. Ter tempo para apreciar as estações mesmo que aceleradas e trocadas. Desfolhar o calendário ao ritmo que o teu coração ordena não é uma escolha consensual. Na dúvida, repara que a inteligência artificial não chora, não se queixa e não desiste, mas também não ama, não abraça e não sorri. Tu não és uma máquina, um algoritmo, nem um robot. Se precisares de um intervalo para o próximo episódio, uma trégua na tua luta, toma coragem, porque parar não é morrer, é apenas respirar profundamente.

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Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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