Encontro, na Brasiliana Fotográfica, entre os retratos de Alberto Henschel (1827-82), o de uma escrava nua da Bahia. Tentada a ver se nos parecemos, imagino para mim uma parente extraviada, e dela me perco ainda mais. De pouco me serve o que julgo ser para decifrar no olhar dessa rapariga um significado preciso. Como terá Henschel mandado que se despisse? Quem lhe terá posto os brincos e a pulseira de contas? O que se terá seguido àquele momento? Não sou esta mulher, nem ela me é nada, apesar da tentação de legendar o seu retrato com a minha vida.

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Ela está longe de estar despida na imagem. Se não a descortino, é talvez porque não está lá. Apenas o brinco e a pulseira (emprestados?) reluzem no retrato. E vendo-o hoje, depois de já muito ter chovido, apercebo-me de que a fotografia de Henschel não é a de uma rapariga usando um brinco talvez de pérola, mas a de uma pérola sem rapariga. O passado parece-se, por vezes, com um cultivo de pérolas para uso próprio. A baiana contumaz intima-nos a coibirmo-nos de nos imaginarmos seus herdeiros: uma gula da posteridade, como qualquer outra. A nua da Bahia persiste como família de ninguém.

Perante este retrato, ocorre-me o senhor muito alto sentado à minha frente em todas as salas de cinema, impedindo a visão. É a indesculpável pontaria para me sentar à minha frente. Percebo-me destinada a parafrasear a minha exasperação acerca desse espectador inoportuno, que sou eu. Não posso fazer mais do que paráfrases dessa exasperação. É-se o mais desconfortável dos cinemas: aquele em que, tentada a legendar com a minha vida todos os filmes, sou forçada a ver que não sou nenhuma das personagens, e que a identificação é uma inclinação infundada.

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E, no entanto, o que nos protege de nos imaginarmos dentro do filme é a paráfrase inescapável da nossa exasperação, desafiando-nos a responder à nossa falta de paciência para connosco com uma paciência infinita para os escrúpulos que o espectador da frente desperta em nós. “Saia da frente”, mostra-nos ele, é uma repreensão que ganharíamos em dirigir a nós mesmos, antes de a dirigirmos aos outros. Afinal, julgando apiedar-me, o que é procurar na negra da Bahia feições familiares senão iniciar uma tipologia da vaidade? Se não me consigo impedir de o fazer, posso tentar esgueirar-me para a cadeira do lado de maneira cada vez mais apagada. Sermos cada vez mais claros acerca dos nossos escrúpulos talvez valha uma vida.

Roland Barthes refere-se, em A Câmara Clara, à “mortalha da Pose”, espoletada pelo disparo da objectiva quando somos fotografados. Seria preciso, porém, que o contemplador se amortalhasse a si: que, em vez de tentar dispor-se na atitude certa, morresse perante a rapariga. Ela pareceria incitar-nos a morrer para a perceber e para a merecer. É preciso, contudo, menos espalhafato que morrer. Até uma mortalha é um adereço. Menos barulho que uma procura, ou uma descoberta. Menos que uma diligência ou uma remissão. Um extravio paulatino e despercebido, como a perda de um rumo ou de uma caligrafia. Não posso, todavia, provocar esse desaparecimento. Fazer-me desaparecer não é bem ‘fazer’. Não preciso de tentar que a escrava me escute, me fale, ou me substitua, mas de me desenredar de mim quando a contemplo. De que maneira o posso conseguir, porém, sem imaginar que ela me pode resolver?

Buscar menos: nem salvamento na sua nudez, nem uma espectacular auto-anulação. Não perscrutar: ir indo. Encontrar em mim a via de um médico que não deixa história, que salva mas não se imprime; médico em memória de cujas mãos hábeis se acenderão nenhumas velas; que não dará nome a qualquer rua, escola, ou vivenda. Se nos coube o retrato da negra nua da Bahia, olhemo-lo como viveu esse médico. Pouco barulho: apenas o jogo banalizado da decifração da sua caligrafia, confiada a um doente que, passando-a a um farmacêutico, o fizesse não como a uma mensagem secreta e instigante, mas com a naturalidade de quem, sabendo porventura ler, não sabe ler o que o pode salvar. Estamos então por nossa conta, quando entregues à ilegibilidade dos outros. Pouco barulho: apenas o destino desse médico, o de um gatafunho, que um dia foi a caligrafia sofrível de uma criança de dez anos.

Djaimilia Pereira de Almeida estudou Teoria da Literatura na Universidade de Lisboa. É autora de “Esse Cabelo” (Teorema/Leya, 2015).