Provavelmente vou chocar muita gente ao admitir que uma das primeiras coisas que me lembro de dizer a mim mesma no início de carreira foi que não queria tratar pacientes com perturbação borderline. Mesmo entre psiquiatras, que no dia-a-dia se veem a braços com patologias e comportamentos que o cidadão comum só vê em filmes ou lê em livros, borderline continua a ser uma espécie de bicho papão. Como psiquiatras, somos treinados a reconhecer padrões de comportamento, a classificar sintomas e a formular diagnósticos. Na teoria, não devia ser mais difícil falar e tratar de borderline usando a mesma objetividade que se começa a ver quando se fala de ansiedade ou depressão. Mas a realidade confronta-nos com os nossos próprios preconceitos. E ainda bem que sim. Ou não teria tido a oportunidade de descobrir o quão tinha errado na minha previsão precoce.

Lembro-me bem do dia em que me disseram que ia ter a famosa Senhora M. como doente. Estava há pouquíssimo tempo na unidade, acabada de chegar à Alemanha, mas a psiquiatra de M. teve de tirar baixa de forma inesperada. Os outros médicos não eram uma escolha sensata (a doente não queria profissionais do sexo masculino e com os restantes não se tinha entendido), por isso teria de ser eu a assumir a paciente. Uma revisão aprofundada do processo clínico confirmou as minhas apreensões: Perturbação de Personalidade Borderline e também perturbação de Stress Pós-Traumático. Previ mentalmente os desafios que viriam. Havia uma sombra de preconceito que me acompanhava, uma crença silenciosa de que pacientes com Borderline eram “difíceis”, “manipuladores”, “imprevisíveis”. Para além disso haviam as histórias. Constantes readmissões, comportamento imprevisível e autodestrutivo, automutilação, falta de cooperação, ameaças de agressão a terceiros.

A perturbação de personalidade borderline, uma perturbação caracterizada por desregulação emocional e uma montanha-russa de emoções extremas que arrasta as pessoas afetadas aos limites, um fogo e gelo dos quais são reféns, é das entidades psiquiátricas mais marginalizadas na sociedade atual. As redes sociais, veículos de informação na literacia da saúde, têm falhado com a caracterização da perturbação borderline. Há até quem afirme que borderline é psicopatia. Há quem o faça, apesar de ser profissional da área da saúde mental. É nesses momentos que sinto vergonha: por ter “colegas” que contribuem para a estigmatização e por, noutros tempos, eu própria ter sido influenciada por essa retórica.

Quando a Senhora M. entrou no meu consultório pela primeira vez, o que me chamou à atenção foi o seu olhar. Vivo, fogoso, com um ligeiro sarcasmo à mistura. Algo a milhas de distância, da frieza e vacuidade características da psicopatia. Estava uma pessoa ali. Com angústia, uma agitação constante que a prendia, mas também com os desejos e esperanças que são a própria essência do ser humano.

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As primeiras sessões de terapia foram um desafio. A relação da Senhora M. comigo oscilava entre desconfiança mascarada e hostilidade declarada. O que é que eu, uma jovem de 26 anos, podia saber de uma vida marcada por adversidades e medo? M. podia ser volátil e as suas emoções explodiam sem aviso. Eu mantinha a atitude profissional, embora, por vezes, houvesse uma resistência em mim. Acreditava estar a fazer o meu trabalho ao manter uma distância emocional.

Mas a vulnerabilidade emocional é um grande veículo de mudança. Numa das nossas sessões, disse a M. que não sabia se estava a conseguir ajudá-la, mas que se ela me permitisse, ia continuar a tentar. Ia estar ali quando ela precisasse, para dizer as coisas que precisavam de ser ditas e dar uma direção à terapia, mas também quando as coisas corressem mal, uma vez, outra vez. Só havia uma condição: M. tinha que querer mudar. No momento em que isto deixasse de ser verdade, eu já não teria poder para fazer nada. Este é um dos motes da Terapia Comportamental Dialética que aprendi primeiro, o Gold Standard para o tratamento psicoterapêutico da perturbação borderline e um conjunto de princípios que com o tempo e o meu estudo intensivo da terapia comecei a aplicar também na minha vida pessoal.

M. começou a contar a sua história na sessão seguinte. Primeiro em staccato e depois como uma enxurrada a seguir a uma chuva intensa. Era uma história de negligência e traumas que cortavam como facas afiadas. Traições por aqueles que a deviam ter ajudado, incluindo as autoridades que não a tinham defendido a ela e aos seus filhos de um ex-marido abusador. A sua vida tinha sido, desde tenra idade, um constante estado de sobrevivência. Como é que alguém que tinha sofrido estas condições poderia confiar no mundo à sua volta, dar-lhe uma oportunidade? Cada tentativa da sua parte tinha sido uma desilusão com custos altos. Cada explosão emocional, cada tentativa desesperada de se conectar aos outros, cada idealização e ódio intensos, cada momento de vazio interno… Tudo reflexos de uma alma que tinha sido maltratada.

A pessoa diante de mim começou a transformar-se. M. deixou de ser um diagnóstico complicado num pedaço de papel que me causava insegurança e, se for honesta, uma dúvida insuportável nas minhas próprias capacidades como médica e terapeuta. Vi um ser humano que tentou desesperadamente fazer o melhor que podia em situações com que nenhum de nós se devia ter que confrontar. Senti o meu preconceito a desaparecer e aprendi que as minhas emoções, a minha empatia, tinham um papel importante a desempenhar naquele gabinete.

Rotular a perturbação borderline como “difícil” é, muitas das vezes, um reflexo das nossas próprias limitações em compreender e oferecer um tratamento adequado às necessidades das pessoas afetadas. Compreensão, humanidade, paciência mas também paixão e coragem para insistir quando já todos perderam a esperança são os ingredientes secretos. Na terapia não há causas perdidas, há apenas caminhos alternativos e pessoas dispostas a percorrê-los.

O caminho de M. não foi linear. Houve recaídas, frustração, impasses. Mas funcionou porque, a partir do momento em que ambas decidimos comprometer-nos a percorrê-lo não olhamos mais para trás. Esse é o poder do compromisso e da segurança na relação terapêutica. Aprender a ver por detrás de reações, a escutar verdadeiramente, a compreender ações aparentemente contraditórias. A mudança na terapia é simbiótica; a mudança do terapeuta reflete-se no paciente e vice-versa. A pouco e pouco, a Senhora M. começou a encontrar o seu caminho para a sua felicidade.

Olhando para trás, vejo como M. me mudou enquanto médica, terapeuta e pessoa. Passei a voluntariar-me para tratar pacientes Borderline. Fiz formação em terapia de trauma. Percebi que o meu papel é, acima de tudo, caminhar ao lado dos meus pacientes, especialmente nos momentos mais difíceis. Aguentar em conjunto quando é preciso e estender a mão no momento em que a mudança está pronta para acontecer.

Estou grata por todos os meus pacientes Borderline. Admiro a sua força, determinação e sensibilidade. E em retorno prometo fazer o possível para acabar com o estigma.