Desde que nos conhecemos enquanto pessoas que conhecemos pessoas, certo? Provavelmente nenhum dos leitores foi educado por lobos no meio de uma selva longe da civilização (apesar de as caixas de comentários por vezes sugerirem algo parecido). No entanto, as pessoas à nossa volta, por muito que correspondam a um facto óbvio desde que existimos, representam eventualmente um dos mais difíceis de admitir. Claro que há pessoas à minha volta, dirá qualquer cidadão, por pouco inteligente que seja. Mas que essas mesmas pessoas obtenham uma existência real dentro das nossas consciências vai um passo muito maior e que é dos mais árduos e necessários de dar. Diria até que o tempo em que por aqui andamos é essencialmente o desafio de, tendo visto pessoas à nossa volta, admitirmos a sua chegada real dentro do nosso coração.

Logo, uma das coisas mais difíceis de uma pessoa meter dentro da sua cabeça é a existência de outras pessoas lá fora. Isto, que parece uma platitude, é, afinal, um dos assuntos que, com um vocabulário menos simplista, Emmanuel Levinas desenvolveu ao falar, por exemplo, no outro com “O” grande — o Outro. No livro “Totalidade e Infinito” aprende-se, por exemplo, “a subjectividade como acolhendo Outrem, como hospitalidade. Nela se consuma a ideia do infinito”. Ou seja, o mais valioso que podemos experimentar, traduzido por Levinas como “infinito”, é a entrada de quem está lá fora, o Outro, pela nossa cabeça a dentro. Mais do que raciocinar, precisamos de receber.

O mais fácil é, ao vermos pessoas existirem à nossa volta, não lhes franquearmos presença real dentro de nós. Nessa medida, vivemos no meio de pessoas que nem pessoas chegam a ser, tornadas meras figurantes de um filme que se resume a nós mesmos. Já pensámos em todas as pessoas que, tendo existido, nunca se permitiram viver acompanhadas por outras que povoavam as circunstâncias do seu dia-a-dia? Deus nos livre de sermos essa gente. Afinal, o mundo está cheio de pessoas órfãs de pessoas, acompanhadas cá fora mas sozinhas lá dentro.

A nossa tendência é acharmos que sabemos alguma coisa quando, sozinhos nos nossos pensamentos, averiguamos se eles se adequam ou não à realidade externa. Mas a provocação de Levinas era afiada: nós só sabemos alguma coisa quando somos precisamente impedidos de ficarmos sozinhos, seja com pensamentos mais certos ou mais errados — a experiência do conhecimento é uma outra pessoa que se atravessa e nos impede de nos pensarmos sozinhos. É esse o tal encontro com o outro de “O” grande, o desafio da alteridade (uma palavra que, confesso, acho irritante).

Logo, podemos perfeitamente ser impostores que, exibindo uma suposta sabedoria, permanecemos fechados à existência dos outros à nossa volta — no fundo, a denúncia de que todo o conhecimento em que pavoneamos se resume a uma fachada. Daí todos conhecermos alegados cérebros que, por impressionantes que pareçam, revelam uma insensibilidade total em relação à existência da diferença radical que nos é trazida pelos outros. O teste da vida inteligente que nos cabe não é a quantificação do que pensamos, é a quantificação das pessoas que nos cercam. Uma pessoa que consegue admitir que existe pelo menos mais uma além dela já é mais inteligente do que aquela que, ainda que nobelizada no seu raciocínio, é insensível aos outros. O milagre da ciência não é 130 no Q.I., é pelo menos duas pessoas no coração de alguém.

Nós, que não nasceríamos sem que outros fossem a origem do nosso nascimento, somos especialistas em nos esquecermos deles. Eu, que precisei de um pai e de uma mãe, sou versadíssimo em me tornar um mau filho. Se a velha doutrina do pecado original também não passar pela naturalidade com que filhos de pais vivos se tornam naturalmente em pessoas órfãs de pessoas, vai passar pelo quê? A filosofia de Emmanuel Levinas estava cheia de religião, algum daqueles críticos mais cínicos pode dizer. Diria que estava apenas consciente de que o início da verdadeira inteligência é confrontar o nosso isolamento.

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