Ninguém tem de pedir desculpa por não saber línguas.  Saber línguas não é o mesmo que saber ler: é um talento que impressiona quem não o tem, como assobiar ou imitar pessoas; mas possui um alcance limitado.  Lemos comummente os livros mais importantes em tradução, e é também frequente não conseguir ler no original os livros que estimamos mais.   Algumas traduções são tão lidas e tão estimadas que acabam por fazer esquecer por completo o original; e acabam por ser tratadas como obras importantes das literaturas escritas nas línguas que usaram.

O caso mais flagrante é o dos livros da Bíblia.  A Bíblia hebraica foi traduzida para grego a partir do sec. III a.C. possivelmente porque já quase ninguém na altura a conseguia ler em hebraico; e depois, no caso do cristianismo com o Novo Testamento, para mais línguas hoje extintas, e para línguas que ainda se falam.  A tradução completa da Bíblia cristã, do fim do sec. IV, é um esplêndido exemplo de literatura latina; e depois da invenção da imprensa as traduções mais esplêndidas dos sécs. XVI e XVII criaram hábitos aos melhores escritores e a muitas maneiras de falar: e são por isso quase sempre citadas sem pensar.

Em Portugal a literatura deve pouco a traduções portuguesas antigas da Bíblia, porque estas são tardias e não muito esplêndidas.  Há todavia uma excepção, que nos faz imaginar como poderia ter sido o futuro se tivesse sido lida por escritores e por mais pessoas: a primeira tradução portuguesa da Bíblia.   Tudo acerca dela é improvável: um nativo de Mangualde, João Ferreira de Almeida (1628-1691), apareceu aos catorze anos nas Índias Orientais holandesas, como se tivesse sido raptado por um pirata de Fernão Mendes Pinto.  Tornou-se calvinista, foi ordenado, e começou a traduzir a Bíblia.  Os resultados seriam publicados depois na Holanda.  Parece que Almeida sabia bem grego, latim e hebraico; mas imitava português ainda melhor.

As edições de Almeida foram piorando à medida que eram actualizadas pelas igrejas reformadas; e em Portugal a igreja e o público irreformados quase nunca lhes ligaram.  Em 1681 Almeida tinha apesar disso imitado incomparavelmente o Jesus de São João a admoestar Nicodemos: “o vento adonde quer sopra, e ouves seu soído; porém não sabes donde vem nem para onde vai.”  E concluía: “assim é todo aquele que é nascido de Espírito.”   “Nascido de Espírito” parece peculiar, mas foi o que São João quis dizer.  Também já não se usa a palavra “soído,” que talvez tenha sido aproveitada da Beira Alta para um termo grego que não significa bem ruído.  Estes pormenores não interessam nada a quem acredita que a leitura só serve para chegar mais depressa às mensagens: da arte, da política, ou da religião.  A maioria de nós não foi habituada a prestar atenção ao soído; alarma-nos um pouco que o vento possa soprar onde quer.

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