A nossa Lei de Defesa Nacional afirma o seguinte no seu Artigo 1º: “A defesa nacional tem por objectivos (…) assegurar a liberdade e a segurança das populações e a protecção dos valores fundamentais da ordem constitucional contra qualquer agressão ou ameaça externas.”

Pergunto agora: se a pandemia do coronavírus não foi uma agressão ou ameaça externa, digna da activação e mobilização das nossas Forças Armadas (FFAA), então o que é uma agressão ou ameaça externa à liberdade e segurança das populações e aos valores fundamentais da ordem constitucional?

Recapitulemos:

As nossas FFAA dispõem de serviços de saúde, cuja particularidade que sustenta a sua razão de existir e os distingue dos outros serviços de saúde é a capacidade de projecção dos cuidados médicos e cirúrgicos à distância.

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A verdadeira razão de ser da Saúde Militar assenta na componente operacional, assegurando a prontidão dos efectivos militares nos vários cenários de actuação, em particular no apoio às forças em operações ou em campanha.

A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 275º determina que as FFAA estão incumbidas de “participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte”, bem como de “colaborar em missões de protecção civil, em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, e em acções de cooperação técnico-militar no âmbito da política nacional de cooperação”.

No cumprimento destas missões, as FFAA – nomeadamente a Marinha e a Força Aérea – asseguram a busca e salvamento marítimo, numa área de responsabilidade de quase seis milhões de quilómetros quadrados, correspondendo a cerca de 63 vezes a superfície do território nacional.

Ora se no mar, o serviço de saúde é prestado pelas FFAA, a desempenhar “missões de protecção civil, tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações” previstas na Constituição, porque não fazê-lo em terra?

Em 2010, quando era Primeiro-Tenente Médico Naval da Armada Portuguesa, fui destacado para três missões internacionais, que me despertaram para o potencial que as FFAA dispõem:

  1. Missão na Amazónia, a bordo do Navio de Assistência Hospitalar (NAsH) Carlos Chagas da Marinha do Brasil. Também conhecidos como “Navios da Esperança”, os NAsH têm como missão principal realizar assistência médico-hospitalar, odontológica e sanitária às populações ribeirinhas. Em suma, a Marinha do Brasil presta os cuidados de saúde primários às populações da Amazónia;
  2. Missão “Pacific Partnersip” em Timor Leste, a bordo do navio hospital americano USNSMercy. Tratou-se de uma missão humanitária coordenada por militares, de cariz fundamentalmente diplomático, que pretendia reforçar as parcerias estratégicas regionais definidas pela política internacional norte-americana, mediante a prestação de cuidados de saúde;
  3. Missão de Cooperação Técnico-Militar com Timor-Leste, num projecto de assessoria para a edificação de um Serviço de Saúde. Foram redigidos os termos de referência para uma Clínica da Cooperação, que tornaram evidente o grande contributo que Portugal poderia oferecer a uma nação, com o destacamento de “apenas” quatro efectivos (um médico, um dentista, um enfermeiro e um socorrista).

Em Díli, nessa altura, estava presente uma Companhia da Guarda Nacional Republicana (GNR). E pasmei ao constatar que o Serviço de Saúde dessa Companhia da GNR era do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), quando a GNR dispõe do seu próprio Serviço de Saúde Militar.

Na altura admirei-me com esta duplicação de forças (e de custos) e alertei para o risco de se perder ainda mais terreno para o INEM, em competências que constitucionalmente incumbiam aos militares. Curiosamente, nesse mesmo ano decorreu uma cimeira da NATO em Lisboa, cujo aprontamento sanitário também esteve a cargo do INEM, e não dos militares, como seria de prever. E o mesmo sucede quando assistimos nas notícias ao empenhamento do INEM no resgate de cidadãos portugueses vítimas de catástrofes no estrangeiro.

Em Portugal, o INEM é o actor principal da emergência médica pré-hospitalar, com capacidade instalada de projecção no terreno de hospitais de campanha, ambulâncias, veículos automóveis rápidos e aeronaves; tem a competência de formação e certificação/acreditação na área da emergência médica; tem projecção internacional, participando em missões militares e de resgate de feridos.

Em Portugal, nós temos as FFAA a prestar o serviço de busca e salvamento no mar e o INEM a prestar esse mesmo serviço em terra (e no estrangeiro).

E em 2021, num cenário de catástrofe sanitária, assistimos a outra dicotomia: o INEM a prestar auxílio na triagem dos doentes que recorrem aos hospitais e o serviço de saúde militar alemão a prestar auxílio aos hospitais portugueses com o destacamento de efectivos e o envio de material.

O INEM goza de enorme e merecido prestígio junto de todos os Portugueses. A sua competência na emergência médica é inquestionável. No entanto, são recorrentes as notícias polémicas e sobejamente conhecidos os limites e constrangimentos do INEM. Porquê ter um quadro civil da função pública para emergência médica, quando este já existe sob a tutela militar?

Considero que a disciplina militar será benéfica (diria mesmo essencial) para resolver uma série de problemas operacionais, a começar pelas escalas de serviço de emergência médica nacional. E a instituição militar, a quem falta proficiência nesta área, tem uma valência que falta ao INEM: a hospitalar.

Por outro lado, é lícito questionar a missão, a prontidão e a proficiência da saúde militar portuguesa. E sobretudo num cenário de crise sanitária como este que vivemos em 2021, é imperativo definir qual a missão, prontidão e proficiência que queremos para os nossos militares, em especial no serviço de saúde.

A proposta que se apresenta, é a de tornar o INEM numa instituição militar:

  1. Extinguir o INEM enquanto organismo civil e incorporá-lo nas FFAA, que passarão a assegurar em terra, a emergência médica que já asseguram no mar;
  2. Aproveitar a implantação territorial das unidades militares dos três ramos das FFAA, para servir as populações;
  3. Repensar o recenseamento militar e reequacionar o Serviço Militar Obrigatório/reserva territorial, para garantir os homens e mulheres necessários em situações de catástrofe. E que nestas situações exista uma organização pré-definida, pensada, estudada, implementada, formada e treinada, que só poderá ser de índole militar (recordemos a eficácia da resposta à pandemia em Israel);
  4. Criar uma rede nacional de hospitais militares, que seja responsável pela assistência na doença, não só dos militares das Forças Armadas, mas também das forças de segurança, Justiça, altas entidades do Estado e respectivos familiares (e repensar o IASFA e outros subsistemas públicos e as suas convenções).

Uma estrutura hospitalar que servisse uma população com esta dimensão, obteria seguramente idoneidade formativa para as especialidades médicas e cirúrgicas, enfermeiros e técnicos de saúde, facto que iria permitir finalmente que os efectivos militares em formação em instituições civis, servissem a tempo inteiro nas Forças Armadas.

Uma estrutura hospitalar com estas capacidades, nomeadamente nas competências do intensivismo e da emergência médica, poderia também acolher profissionais de saúde civis. Estas sinergias iriam constituir um forte instrumento de aproximação entre a sociedade civil e a realidade militar, que se têm vindo a distanciar desde o fim do Serviço Militar Obrigatório.

Nesta estrutura hospitalar poderia ser implementado um Centro de referência de Trauma (nível I do “American College of Surgeons”). Trata-se de uma unidade multidisciplinar terciária destinada a receber as vítimas de acidentes (que são predominantemente rodoviários), com benefício comprovado a nível mundial na redução da mortalidade das vítimas.

Pela integração do INEM, as nossas FFAA iriam reforçar a sua capacidade hospitalar com mais dispositivos para missões de evacuação – ambulâncias, veículos automóveis rápidos e aeronaves – e teriam a oportunidade de efectuar treino de evacuações médicas em situações reais, prestando ao mesmo tempo um extraordinário serviço cívico à população.

A fusão sob égide militar e o desempenho por rotina destas missões de protecção civil iriam dotar os serviços de saúde das FFAA da devida formação e treino em situações de emergência médica, para garantir a proficiência na sua missão principal, que é projectar à distância cuidados médicos e cirúrgicos em cenários de catástrofe e de apoio às forças em operações.

Neste Serviço de Saúde Militar deveria ser re-dimensionado o departamento de guerra NBQ (Nuclear, Biológica e Química), pensando sobretudo nos agentes biológicos.

No Serviço de Saúde Militar deveria estar sediado o quartel-general de um Centro Nacional de controlo sanitário em cenários de catástrofe, com competências equiparáveis, ou mesmo mais abrangentes que a Direcção Geral de Saúde (DGS), e que fosse activado num estado de emergência (por pandemia, terramoto, incêndios ou outras catástrofes), dispondo dos efectivos recrutados e aprontados num restaurado Serviço Militar Obrigatório e na reserva territorial.

Um Serviço de Saúde Militar desta dimensão e competência poderia constituir-se num activo valioso na diplomacia internacional, no seio das organizações que Portugal está inserido, nomeadamente na UE, NATO, ONU e CPLP, em relações bilaterais entre nações e em missões de cooperação.

Com um Serviço de Saúde Militar desta dimensão e competência, as nossas FFAA estariam muito mais capacitadas para cumprir a sua missão de defesa nacional.

Num tempo de pandemia e sucessivos estados de emergência, impõe-se uma reflexão suplementar sobre o papel das FFAA.

As FFAA são um dos pilares da nossa soberania, e este é o tempo para se afirmarem como tal, com o prestígio e reconhecimento que lhes é devido.