Quando Marx, citando Hegel, afirmou, em 1852, em“O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” que “Todos os factos e personagens de grande importância na história do mundo acontecem duas vezes (…) A primeira como tragédia, a segunda como farsa”, longe estaria de imaginar que essa dicotomia se iria aplicar a si mesmo, talvez no seu maior expoente.

Sobre a tragédia (ou tragédias) não cabe dissertar nestas linhas. Quanto à farsa, começo por um convite à reflexão sobre dois cenários:

  1. Concordaria que um Governo socialista, sustentado por uma coligação partidária parlamentar de esquerda, após cortar o apoio a escolas privadas, defendendo que a educação dos nossos filhos deve ser ministrada pelo Estado, viesse a promover e financiar uma rede de colégios privados para as famílias dos seus funcionários, enquanto todos os outros cidadãos eram forçados a colocar a sua prole em escolas públicas?
  2. Aceitaria que um Governo socialista, sustentado por uma coligação partidária parlamentar de esquerda, enquanto anunciava a promoção do transporte público, aumentando os impostos sobre veículos, combustíveis, portagens e parquímetros, financiasse empresas privadas de transporte de passageiros para servir os seus funcionários e as suas famílias, enquanto a restante população tivesse de se contentar com transportes colectivos?

Na minha opinião, estes dois cenários evidenciam a incoerência da Assistência na Doença aos Servidores do Estado (ADSE) contemporânea a um Serviço Nacional de Saúde (SNS).

A ADSE foi criada por Salazar em 1963, de forma hábil, socialmente sensível e financeiramente viável, quando não existia um SNS.

A partir de 1976, no momento que a nossa República foi constituída para “abrir caminho para uma sociedade socialista”, e sobretudo depois de 1979, quando foi criado o SNS, a coerência ideológica obrigaria necessariamente à extinção da ADSE, por proposta das forças ditas de esquerda, socialistas e comunistas.

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O que aconteceu foi diferente: criou-se um SNS público e universal, mas os funcionários e pensionistas do Estado (e as suas famílias e dependentes) continuaram a beneficiar do privilégio exclusivo de usufruir de um serviço de saúde privado.

A manutenção da ADSE demonstra que os partidos políticos portugueses ditos de esquerda, socialistas e comunistas, aceitam e promovem a iniciativa privada para prestar um serviço discriminado a uma “elite” (os funcionários públicos) e simultaneamente defendem que esse serviço, quando prestado à restante população (os trabalhadores do sector privado), deve ser gerido e prestado em exclusivo por um organismo do Estado.

A defesa da ADSE é incompatível com a defesa do monopólio público-governamental na prestação de cuidados de saúde, com a negação de parcerias público-privadas (PPP) em hospitais do SNS, e com a negação de hospitais privados incluírem o SNS, para servir os Portugueses que não são funcionários públicos.

Em suma, a manutenção da ADSE é sinónimo de descrédito na capacidade e na qualidade do SNS por parte dos nossos políticos ditos de esquerda, socialistas e comunistas.

Na minha opinião, vale pouco a notícia de um processo negocial entre três partes: ADSE, empresas privadas de saúde e trabalhadores dessas empresas. Mas se a notícia é esta, então é imperativo assinalar que num tempo de pandemia, enquanto se reconhecia o papel primordial dos trabalhadores e instituições da saúde na sociedade, os doentes servidores do Estado vieram depreciar o valor do trabalho dos profissionais da saúde e dos hospitais.

Na minha opinião, o que deve ser notícia e o que se deve perguntar aos nossos políticos ditos de esquerda, socialistas e comunistas, é como conseguem defender o SNS exclusivamente público, atacar os serviços de saúde privados e as PPP e ao mesmo tempo defender a ADSE. E a resposta não poderá ser a generalização da ADSE a todos os Portugueses. Isso já existe, é o SNS.

Em tempo de pandemia e na circunstância de um período eleitoral, os nossos políticos e personalidades mediáticas com responsabilidade social, sobretudo os que se afirmam de esquerda, socialistas e comunistas, têm uma oportunidade soberana para esclarecer o povo sobre esta incompatibilidade ideológica que é a ADSE e apresentar um modelo político coerente e viável para a saúde dos Portugueses.