Se, aos 15 anos, um aluno está no 3.º ciclo e já conta com três retenções escolares, todo o sistema educativo, social e familiar teve de falhar. Um aluno com este percurso escolar é, certamente, um Soldadinho a quem não foi feita uma perna, por falta de chumbo, como na famosa história de Hans Christian Andersen.
A retenção de alunos em anos que não sejam os de final de ciclo está regulamentada e deve fazer-se apenas “a título excecional”. Apesar de nós professores termos isto em mente, o debate sobre chumbar ou não certos alunos – que não desenvolveram aprendizagens, faltaram às aulas, não apresentaram materiais necessários, tiveram comportamentos incorretos, entre outros – volta a surgir à medida que nos aproximamos do final de ano letivo. Se para os finais de ciclo as regras são explícitas (e com o regresso dos exames finais de 9.º de Português e Matemática a contar), nos outros anos as contas podem ficar mais complicadas. Transitamos alunos com sete níveis inferiores a três e outros com apenas quatro níveis inferiores a três ficam retidos.
Então o que estamos a avaliar?
Domingos Fernandes tem desenvolvido amplo trabalho nesta área e procurado distinguir avaliação pedagógica, classificação e notas, sustentando a importância e diferença da avaliação formativa (avaliação para as aprendizagens) e da avaliação sumativa (avaliação das aprendizagens). Prendo-me naquilo a que vulgarmente chamamos “as notas” de final de ano letivo e que podem decidir o futuro académico de um aluno. Nesse valor reflete-se o conhecimento adquirido e as competências desenvolvidas pelos estudantes. Ora, se um aluno não atingiu esses requisitos mínimos, a transição automática dá ideia de facilitismo, aceitação da mediocridade ou mesmo de um plano economicista do Governo.
Não o considero. De acordo com vários investigadores os efeitos da não transição de ano letivo em pouco ou nada favorecem o desempenho académico dos alunos no futuro. Pelo contrário. O estudo Reviews of School Resources: Portugal 2018 mostrava que cerca de 34% dos alunos de 15 anos chumbaram pelo menos um ano, quase três vezes mais que a média da OCDE (12%) e que um dos seus principais impactos era o abandono escolar precoce. Outros estudos internacionais confirmam também que chumbar de ano, em Portugal, é um fator fortemente influenciado pelo estatuto socioeconómico do aluno. De acordo com o PISA 2015, mais de 50% dos alunos de 15 anos de meios carenciados repetem pelo menos uma vez de ano. Reiteram ainda que alunos oriundos de contextos desfavorecidos têm uma probabilidade quatro vezes superior de ficar retidos. E que os impactos psicológicos, anímicos e relacionais são brutais, comparáveis até com algo como a perda dos pais.
Moral da história. Vista muitas vezes como medida necessária para garantir a qualidade de ensino e o desenvolvimento das aprendizagens, a prática de chumbar de ano assoma-se mais como medida punitiva (“eu bem vos andei a avisar” – quem nunca disse?). Revela problemas de um sistema educativo que começam no pré-escolar e que se vão acumulando ao longo de anos de passagem por ambientes pouco propícios à aprendizagem (familiares e/ou escolares). É um mecanismo promotor de maus-tratos tantas vezes já existentes (“se chumbar, dou-lhe uma sova” – quem nunca ouviu?). Encobrem processos de avaliação que podem ser injustos e subjetivos, pois os referenciais e instrumentos de avaliação variam entre instituições de ensino, escolas e mesmo de turma para turma, consoante os professores.
Não defendo o chumbo, reprovação, retenção, não transição, como lhe queiramos chamar, como estratégia de aprendizagem. Só um ensino mais focado no aluno, personalizado, com programas de recuperação contínua, de modo a permitir que os estudantes avancem gradualmente, sem a punição de chumbar de ano. Defendo o direito a uma Educação de qualidade, que deve ser de acesso livre, equitativo, e que conduza a resultados de aprendizagem relevantes e eficazes, como reforça um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Só assim, creio, a Escola pode auxiliar os que fizeram o caminho sem uma perna a não se atirarem para a fogueira. O teste adaptado não basta e a inclusão é para todos.
Professora do 3.º Ciclo e Secundário
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.