A história é, para nós, um grande e poderoso recurso, a arca do tesouro. É sobretudo assim para aqueles que não têm petróleo, nem diamantes, ouro, nem prata – pobres de recursos materiais, têm de valorizar e extrair o máximo dos recursos imateriais. Mas, bem vistas as coisas, é assim também para possuidores de grandes riquezas minerais ou recursos físicos – por exemplo, a história britânica ou a história da China. Podemos dizer, então, que a história é grande e poderoso recurso para quem a tem grande – e, na verdade, é grande a História de Portugal. É grande a história do mais antigo Reino cristão da Península que chegou aos nossos dias, a história do mais velho Estado-nação da Europa e com fronteiras estáveis. Somos nós.

Há dias, no Diário de Notícias, João Paulo Oliveira e Costa, assinava um artigo de opinião – “Portugal, uma longa e improvável existência de nove séculos”. Depois de resumir traços do nosso percurso, como fomos feitos e o que fizemos, rematava: “País pequeno que se agigantou ao longo da História, Portugal aproxima-se dos nove séculos de existência.”

Essa história, de mãos dadas com a nossa língua, é nosso eixo definidor, informador da nossa identidade, registo da nossa experiência, fonte da nossa influência, robusto factor de coesão. É uma história muito variada e rica, espelho de muitos encontros, viajante por todo o mundo. Dir-se-ia a história de uns fenícios do extremo ocidental da Europa, que fizeram do Atlântico o seu Mediterrâneo e, depois, todos os oceanos também – e o mundo deixaria de ter segredos. Rota após rota, todos passaram a conhecer todos.

Olhando-a em balanço, é uma história notável, inovadora, ousada, integradora, persistente, em que, como tudo, há melhor e pior. Uma história em que o bom é prevalecente, uma história que alimenta a nossa maturidade, afastando o mal para que não se repita, guardando o bem para que se afirme, consolide, amplie. A história não tem de ter um sentido moral – em rigor, história como só história, é narrativa e ciência. Mas ganha se acompanhada de sentido moral e, então, aí, não sendo apenas conhecimento, mas também ensinamento. A nossa história – ou não fôssemos um país de navegadores – é, ela própria, a Nau Catrineta, “que tem muito que contar”.

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Em Novembro de 2020, num artigo no Expresso, “50 anos para celebrar 900”, enunciei publicamente, pela primeira vez, as ideias em que a Sociedade Histórica da Independência de Portugal, no quadro da sua missão e estatutos, começou a trabalhar para Portugal comemorar dignamente os 900 anos de Portugal: um programa concebido para ter Portugal como sujeito e como objecto. Partimos do facto de a fundação do Reino não ter ocorrido numa única data, num só momento, mas em diferentes datas. E não vemos isto como negativo, mas, ao contrário, como muito positivo. Não vemos isto como fonte de discórdia, mas factor de mais ampla concórdia. Não vemos isto como fragilidade, mas quadro de maior e melhor oportunidade.

Não inventámos os marcos da fundação de Portugal. Abraçámos aqueles que, desde os primeiros tempos, a historiografia portuguesa definiu e cultiva: a batalha de São Mamede, 24 de Junho de 1128; a batalha de Ourique, 25 de Julho de 1139; a conferência de Zamora, 5 de Outubro de 1143; e a bula Manifestis probatum, 23 de Maio de 1179. Eis os quatro pilares de referência, que definem, no tempo das comemorações, aquela janela de 50 anos: de 2028 a 2079. Não é estar 50 anos em festa, o que seria absurdo, mas de, em cada momento comemorativo, ter presente que a fundação de Portugal decorreu num espaço largo de 50 anos. E, 900 anos depois, deixar soprar, ao longo de todo o mesmo ciclo largo, a brisa da maturidade, da inspiração, da ousadia, do inconformismo, da autoestima, da vontade de fazer e ser melhor.

José Mattoso, quase no fim da biografia “D. Afonso Henriques”, conta um dos últimos actos do Rei, o casamento de sua filha D. Teresa Afonso com Filipe de Alsácia, para realçar: «Portugal era (…) reconhecido nas regiões mais activas da política europeia como um reino bem implantado que não se confundia com os restantes reinos da Península Ibérica.» Mais à frente, ecoando os elogios do cronista d’ “Os Anais de D. Afonso, Rei dos Portugueses”, remata: «Mal sabia [o autor dos Anais] que estavam iminentes grandes provações para Portugal. Mas os séculos seguintes dar-lhe-iam razão: o reino venceu todas as provas.» Queremos prolongar este juízo: Portugal venceu todas as provas até hoje, 900 anos depois.

Embora aprofundando o conhecimento geral sobre a figura e obra desse grande e extraordinário Rei que foi D. Afonso Henriques e tendo o foco no Portugal medieval que nasceu, para melhor o aprender, explicar e compreender, não se trata de ficarmos apenas por aqui, encurralados no século XII, o que seria abordagem muito redutora para a grandeza dos 900 anos. Não. Dentro daquela mesma janela de 50 anos, queremos assinalar outros centenários de outros factos relevantes para nos fazer e consolidar ao longo dos 900 anos: factos que têm a ver com a formação do território e as fronteiras, com a população, com grandes feitos, com a projecção internacional, com a língua, a cultura e a identidade portuguesa, com as crises e dificuldades e a sua superação.

Temos ainda um outro projecto específico, intitulado “Forais da Fundação, Municípios de Portugal”, para celebrar os 900 anos dos forais dados por D. Afonso Henriques e, anteriormente, por sua mãe (D. Teresa) e por seu pai (Conde D. Henrique). Este projecto, que conta já com o Alto Patrocínio do Presidente da República e cuja comissão executiva deverá ser liderada pelo Município de Viseu, enraizará por todo o país estas comemorações, na linha de um lema próprio: “As terras que fizeram Portugal já estão a festejar 900 anos.” É também a festa da formação da nacionalidade, um dos mistérios do êxito de Portugal.

Aproximamo-nos rapidamente do início do ciclo da fundação, em 24 de Junho de 2028, quando soar o 9.º Centenário da Batalha de São Mamede, em cujos preparativos já temos participado em Guimarães, com a Grã Ordem Afonsina – como de novo acontecerá dentro de 10 dias.

Decidimos, porém, abrir mais cedo a marca dos 900 anos, em 8 de Junho de 2025, em Zamora, na comunidade autónoma de Castilla y León, junto com a Grã Ordem Afonsina, a Fundación Rey Afonso Henriques e autoridades locais. O domingo de Pentecostes de 1125 (nesse ano, em 17 de Maio) foi a data em que Afonso Henriques, muito jovem, a si próprio se armou cavaleiro na catedral de Zamora – assim afirmou claramente a vontade real e o projecto do novo Reino. Não é já uma data da fundação; mas é a sua antecâmara, o seu anúncio. Por isso, marcámos para aqui o arranque, o primeiro sinal público dos 900 anos de Portugal, que gostaríamos que fosse presidido pelo Presidente da República.

É a escolha acertada, atendendo ao que José Mattoso nos conta da visão do nosso primeiro cronista: «Pouco depois [da morte de Afonso Henriques], um cónego regrante do mesmo mosteiro [de Santa Cruz] (…), convencido de que as acções daquele rei não podiam mais ser esquecidas, registava (…), por ordem cronológica, o elenco das que considerava mais importantes, a começar pela primeira, a sua investidura como cavaleiro (…).»

Seguindo o cronista, é assim que faremos. Primeiro acto:  Zamora, 8 de Junho de 2025 – reserve a data.

Esta crónica abre uma série de outras crónicas regulares, em modo rotativo, com os Professores João Paulo Oliveira e Costa e José Eduardo Franco, outros historiadores e autores diversos, participantes no projecto “Portugal 900 anos”. Aqui, irão dando conta de factos importantes da nossa fundação e história, do espírito das celebrações dos 900 anos e de reflexões e abordagens diversas. Agradecemos ao Observador a disponibilidade, a abertura e o interesse.