Portugal esteve, mais uma vez, a viver uma tragédia que já se tornou dolorosamente familiar: os fogos que destroem as nossas florestas, casas, vidas. Mas o que mais me impressiona não é apenas o impacto físico e ambiental – é a reação bipolar dos portugueses. Há quem sinta cada fogo como se estivesse a arder por dentro, e quem simplesmente desvie o olhar, como se nada estivesse a acontecer. E, no meio deste contraste, é impossível não pensar nos efeitos que estas tragédias têm na nossa saúde mental coletiva.

Como psicólogo, o que vejo é um país dividido entre o trauma coletivo e a dessensibilização, duas respostas muito humanas a uma realidade que, muitas vezes, nos ultrapassa.

O Trauma Coletivo: Quando o fogo não é só la fora

Há quem siga cada incêndio como se a sua vida dependesse disso. Quem se sente esmagado pela dor dos outros, pelos relatos dos bombeiros, pelos gritos dos animais a fugir das chamas. Este é o trauma coletivo a manifestar-se. É uma sensação de dor e medo que não pertence apenas a uma pessoa ou família, mas que se espalha como o próprio fogo, afetando toda uma comunidade, toda uma nação.

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Não é apenas uma coleção de traumas individuais, mas um sentimento partilhado de perda, medo e vulnerabilidade que molda a experiência coletiva de um grupo. O sociólogo e psicólogo Kai Erikson descreveu o trauma coletivo como “uma ferida na alma do grupo” (Everything in Its Path, 1976).

Lembram-se do que aconteceu após o 11 de setembro? Ou mesmo do impacto que a guerra na Ucrânia teve e continua a ter em tantos de nós? O trauma coletivo é isso: um sentimento partilhado de insegurança e impotência. É como se, de repente, as fronteiras entre o “eu” e o “nós” deixassem de existir e o sofrimento de um passasse a ser o sofrimento de todos. As imagens dos fogos em Portugal, transmitidas vezes sem conta nos noticiários, nas redes sociais, alimentam este sentimento. É como se estivéssemos lá, no meio do fogo, a respirar o fumo, a sentir o calor insuportável. E isto não é apenas uma metáfora. A nossa mente reage de forma muito real a estes estímulos, criando um sentido de perigo que ativa todos os nossos alarmes internos.

O Eco das Chamas: O Trauma Vicário e o Papel dos Media

Com os fogos a devastarem Portugal, há muitos de nós que, mesmo à distância, começam a sentir o peso do fogo nas próprias costas. É o que chamamos de “trauma vicário”. Aquele tipo de sofrimento que não nasce de estarmos lá, mas de vermos tudo acontecer, vezes e vezes sem conta, na televisão, no telemóvel, no jornal da manhã. Cada nova imagem, cada nova manchete, faz-nos sentir como se estivéssemos no meio das chamas, a ver tudo arder. E, ao seguirmos os fogos em tempo real, acabamos por nos envolver emocionalmente, partilhando o medo e a impotência de quem está na linha da frente. Segundo a American Psychological Association (APA), o consumo constante e incessante de notícias sobre tragédias pode levar-nos a experienciar sintomas de ansiedade, stress e, em casos extremos, até sinais de transtorno de stress pós-traumático (Holman, Silver & Poulin, 2002).

Quando Sentir Também Queima: A Linha Ténue Entre Simpatia e Empatia

No meio de tanto dramas e calamidades, surge uma distinção importante que, muitas vezes, passa despercebida: a diferença entre simpatia e empatia. Pode parecer um pormenor, mas, na verdade, é o que define a forma como nos ligamos à dor dos outros. A simpatia é a capacidade de reconhecer que o outro está a sofrer. É ver o fogo a consumir o outro e sentir tristeza por isso, mas sem se queimar.

A empatia, por outro lado, é um mergulho mais profundo. É deixar que a dor do outro ressoe em nós, a ponto de, por instantes, quase sermos capazes de sentir o que ele sente. É imaginar o calor do fogo na própria pele, a angústia a apertar-nos o peito. A empatia é uma ponte – não nos limita a reconhecer a dor do outro; faz-nos partilhá-la, torná-la nossa, ainda que por um momento.

E é aqui que as coisas se complicam, pois ao vivermos em empatia constante, corremos o risco de cair no trauma do vicário que já referi. Em situações como a dos fogos, que temos todos vivido de forma mais ou menos pessoal, o mais difícil é encontrar o equilíbrio: entre sentir com o outro e não nos perdermos no seu sofrimento.

Dessensibilização: Quando o Fogo Já Não Queima

E, do outro lado, há quem pareça não sentir nada. Quem olha para as notícias dos incêndios e muda de canal, quem suspira e diz: “Outro ano, mais fogos.” Isto não é insensibilidade. Não é frieza ou falta de empatia.

Este fenómeno é o que chamamos de dessensibilização – uma forma de autoproteção em resposta ao excesso de exposição a notícias traumáticas. Segundo a APA (2018), quando as pessoas são expostas repetidamente a eventos trágicos, o seu cérebro adapta-se, levando a uma redução da resposta emocional. Desta forma, a tragédia perde o impacto e o sentido de urgência que normalmente causaria.

É um mecanismo de defesa que surge quando já vimos tanto sofrimento que o nosso cérebro simplesmente “decide” desligar. É como se houvesse um limite para a quantidade de dor que conseguimos suportar e, ao atingirmos esse ponto, tudo o que conseguimos fazer é fechar os olhos e seguir em frente.

A dessensibilização é uma forma de autoproteção, porque se sentíssemos cada tragédia, cada perda, cada chama, com a intensidade que merecem, não seríamos capazes de funcionar. O problema é que, ao nos desligarmos, há o risco de nos tornarmos realmente indiferentes ao sofrimento que nos rodeia. E isso talvez seja (quase) a maior tragédia.

Um País Dividido Entre Sentir e Desligar

Portugal encontra-se num ponto de equilíbrio precário entre este sentir demais e não sentir de todo, entre a dor e o medo de quem vive o trauma coletivo, e a apatia e o distanciamento de quem já não consegue processar mais sofrimento. E, no meio, estamos todos nós, a tentar encontrar um caminho que nos permita continuar a viver, a cuidar, a esperar.

Talvez não haja uma resposta certa ou errada para esta questão. Talvez o que precisamos, como sociedade, seja reconhecer que ambas as reações são válidas e compreensíveis. Que tanto o trauma coletivo quanto a dessensibilização são formas de lidar com uma realidade que, muitas vezes, é demasiado dura para suportar.

Esta linha que separa a empatia da indiferença é, sem dúvida, fina e confusa, e o verdadeiro desafio é encontrar um equilíbrio que nos permita ser humanos, vulneráveis e, ao mesmo tempo, resilientes.

Apagar o Fogo: Uma Sociedade Que Precisa de Cuidar de Si Mesma

Como psicólogo, acredito que o primeiro passo para a cura é reconhecer o que sentimos. Aceitar que o trauma coletivo faz parte de nós, que a dor dos fogos é real e que precisamos de falar sobre ela, de a processar, de encontrar formas de a superar. Mas também acredito que para reconhecermos plenamente a emoção do outro, como a sua dor, é essencial estarmos emocionalmente equilibrados. Isso impede que as nossas próprias experiências, medos ou inquietações contaminem ou distorçam a capacidade de adotar a perspetiva da outra pessoa, permitindo-nos assumir uma atitude verdadeiramente compassiva.

Portugal arde, sim, mas não é apenas nas nossas florestas. Arde na nossa alma, na nossa memória coletiva, nas histórias que contamos uns aos outros. E, enquanto tentamos apagar as chamas lá fora, talvez seja hora de começar a cuidar das que ardem cá dentro.