A música sul-africana amapiano já nas suas versões moçambicanas, o pandza, o trap em volume alto compõem a trilha sonora de alguns bairros periféricos do município da Matola. Não sobrepõe o berro dos tiros repentinos e sucessivos.

Os jovens que habitualmente se reúnem nos muros a consumir espirituosas de 50 a 75 meticais estão com a vida ganha. Depois dos saques aos armazéns e lojas bebem cerveja. Uma pausa nos desenrasques incertos, a caçar uma nhonga (comissão financeira numa transação informal). De noite, o bairro se reúne para patrulhas. Porém há dois grupos. O que teme a invasão das suas casas pelos criminosos fugidos ou soltos da BO. Outro para se escudar de eventuais rusgas policiais em busca do que saqueou.

De meter inveja ao personagem Gatsby, esta figura trágica e complexa de anti-herói, do F. Scott Fitzgerald. Em Inhambane, cidade turística, generosamente beneficiada pelo Índico, celebra a transição do ano. Um escape. No Instagram e Status de WhatsApp a composição das vibes do verão.

Muitas mercearias, nos bairros periféricos da Matola, estão encerradas, escasseiam produtos de primeira necessidade para fazer caril, como dizem os meus vizinhos. No momento, vivemos a linha ténue entre o caos e a anarquia. A pausa do fim de semana é um alívio temporário. Há tréguas. E a questão que não cessa é como saímos disto?

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O cenário que ganha força nas redes sociais é a invasão das instituições do Estado umbilicalmente ligadas à questão. O Palácio da Ponta Vermelha, o Conselho Constitucional, o STAE, os órgãos de comunicação estatais, nomeadamente a Rádio Moçambique, a TVM e o ICS. É a tomada popular das instituições. Acontecerá?

Na busca de amparo diante de um país em que a moderação foi silenciada e que caminhamos, precipitadamente, para o descalabro e coisas mais, há dificuldade de o encontrar. O plano internacional está, igualmente, volátil.

Portugal já se pronunciou. Congratulou o candidato eleito pelo CC. O que causa indignação. Porém, se olharmos com frieza, o posicionamento do Rebelo de Sousa e Luís Montenegro se explicam.

Indo aos factos: os maiores mercados de exportação portuguesa, a Alemanha e a França, vivem uma instabilidade política e financeira que podem estar à beira de um clash. Os EUA de Trump prometem maior protecionismo à sua economia através, entre outros, de tributação mais cara de produtos estrangeiros. Neste sentido, as antigas colónias tornam-se, na falta de alternativa, potenciais e apetecíveis mercados para além dos vários acordos económicos favoráveis à antiga metrópole a contrapeso do bem-estar social dos dois Estados. Ou seja, o modus operandi deste regime é-lhes benéfico.

A fragilidade, entretanto, deste posicionamento é que o que está em jogo em Moçambique é a própria democracia, sobretudo depois do CC, entidade que deveria ser a guardiã do Estado de Direito, ter aprovado um acórdão incongruente.

Um Estado democrático, em que ninguém é deixado de fora, onde a economia flui, há bem-estar social e um positivo índice de Desenvolvimento Humano, é um excelente mercado. Se a lógica for neste sentido, foi um passo em falso.

Ainda sobre a comunidade internacional. A solidariedade global que assistimos para com os sul-africanos contra o Apartheid que envolveu artistas da estirpe de Sting. O ocidente que acolheu em exílio Miriam Makeba, esposa do ativista antiapartheid Stokely Carmichael. Hugh Masekela seguiu. Paris que recebeu Gerard Sekoto.

A memória desses episódios, a prontidão para condenar a Venezuela de Maduro ou Putin na Ucrânia, leva a assumir um plano internacional solidário ao sofrimento do outro e defensor da democracia. Que não mede esforços para derrubar quaisquer subversores.

Essa percepção decepciona-se com declarações precipitadas de players que podem ser relevantes e protagonistas na resolução desta crise.

A aceitação daqueles resultados ignora que em Moçambique, à balança, à espada e à venda nos olhos da Justiça acrescenta-se uma AK47. Ignora-se o contexto que o país vive. A periculosidade disto é a quebra de confiança entre duas nações ligadas pelas razões históricas que conhecemos.

A razoabilidade não nos permite, como moçambicanos, ignorar a instabilidade no plano global. O futuro próximo é de incertezas, instável e caótico. Não é inspirador.

É chegado o momento de se reconhecer que as políticas de priorização do mercado – o liberalismo e o neo-realismo – em benefício apenas do bem social ocidental. Em detrimento da contraparte, das eternas periferias, onde minguam. Não é viável nem sustentável. Não podemos servir apenas para importar matéria-prima.

Economistas como Amartya Sen, Joseph Stiglitz e Dani Rodrik, desacordando em nuances específicas sobre o mercado global, estão de acordo que democracias sólidas, instituições fortes, são alicerces para a estabilidade e equidade no sistema financeiro global.

Neste contexto, as democracias que garantem o Estado de Direito, a proteção de direitos civis e a implementação de políticas económicas que promovam o bem-estar social, possibilitam uma economia sustentável.

A ordem pública democrática viabiliza a estabilidade, previsibilidade e confiança nas instituições, que são essenciais para o comércio e o investimento.

Com este quadro de referências, se o argumento for o mesmo, o passo continua em falso. Não há mercado sem justiça social.

Por outro lado, é um posicionamento que ignora a crise migratória na Europa que está a dar crédito às Le Pen e Venturas, especificamente. A instabilidade em Moçambique pressionará Portugal nesse sentido pelos acordos bilaterais, facilidade da língua e de ser a porta mais próxima para aceder aos benefícios do Schengen.

Termino esta reflexão ao compasso do chilrear dos pássaros no quintal, recapitulando o álbum “Mozambican dance” do guitarrista e compositor Albino Mbié. Está quente, calor húmido e um sol que dá vida às cores das flores no jardim.

A alguns quarteirões daqui, os miúdos apenas gritam pela mudança mas, infelizmente, não percebem os desdobramentos de tal coisa, bebem cerveja. De noite faremos patrulha, exigiremos os Bilhetes de Identidade a quem não conhecemos na zona.

Ouço, do bolso da memória, a concluir, Milton Nascimento a cantar “Nada será como antes”, amanhã. E a minha irmã insiste em “Cale-se” do Chico Buarque.