No outro dia estava a ver o filme Repulsa, de Roman Polanski, onde uma jovem perturbada fica num estado de paranóia, com alucinações horríveis. O objetivo é aprisionar o espetador dentro de uma forte sensação de nojo e repugnância. Na vida real, sem Polanski ou Catherine Deneuve, a repulsa é algo que não acaba com os créditos finais do filme. Nesta semana, experimentei essa sensação quando ouvi e li repetidamente que a economia portuguesa precisa de mais imigrantes. Há muitos sentimentos nesta expressão e vou tentar explicar cada um deles a partir de agora.

Esta frase (Portugal precisa de imigrantes) é um abrir de portas pela comunhão entre povos? Nem pensar, e muito pelo contrário. É uma atitude de quem precisa de empregados não qualificados, precários e acessíveis. A frase deveria ser: a débil e atrasada economia portuguesa precisa de importar mão-de-obra barata para continuar a operar com pressupostos do século passado. Mas a ideia de que precisamos de imigrantes tenta levar o contexto para um nível mais pessoal e humano. No entanto, até aqui a própria argumentação colide com a realidade.

É que os imigrantes vêm em busca de um país do primeiro mundo, onde existe conforto e meritocracia. Em vez disso, encontram lugares onde as rendas são inacessíveis e acabam por ter de viver num quarto com outros imigrantes, quase sempre em situações de decadência humana e social. Isto interessa a quem diz que Portugal precisa de imigrantes? Interessa que se arrendem lojas para servir de moradia a vinte seres humanos? Claro que não, isto é o pensamento saloio “liberal” que um certo partido chegou para agregar um nicho de ignorantes: é o “empreendedorismo” nacional, que no meu tempo se chamava apenas de “chico-espertice”, mas que ainda enriquece muitos oportunistas sem moral.

Foi este mesmo tosco pensamento “liberal” que fez do meu Porto uma cidade sem pessoas, mas com muito alojamento local e quartos para arrendar. E são “empreendedores” deste tipo que precisam de trabalho escravo para sustentar os seus negócios, que de outra forma jamais sobreviveriam. Este pensamento tem dois problemas fundamentais: sem valores, nenhuma entidade enraíza ou permanece; e é um erro clamoroso, como já escrevi em outras ocasiões, continuar na premissa de que o custo do fator trabalho é a maior vantagem comparativa nacional.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Esta frase (Portugal precisa de imigrantes) é a atitude de quem se quer aproveitar de trabalho não qualificado, barato e colocar pessoas a viver miseravelmente debaixo do nosso teto. O acordo tripartido para aumento do salário mínimo nacional é reflexo dessa mentalidade miserável e enganadora, acima de tudo é a economia portuguesa continuar com os pressupostos errados. Daqui a quatro anos, passa os mil euros? Crescimento económico à custa de mão-de-obra barata é continuar a apostar numa indústria rudimentar e num turismo castrador.

Os meus colegas que registam a necessidade de mais imigração, não estão a ter em conta a noção de custo de oportunidade. Não podemos crescer como até agora, como qualquer país em vias de desenvolvimento: sem incentivar verdadeiramente a inovação, nem apostar em centros tecnológicos ou no empreendedorismo em novas atividades. Temos de ter a coragem de olhar para os mercados em ascensão, promover um ambiente vibrante de start-ups capaz de produzir produtos e serviços diferenciadores, facilitar a ligação entre as universidades e as indústrias, criar sinergias para transferência de conhecimento e valorização da investigação. Mas sem deixar de investir em diferentes regiões do interior e explorar as suas vantagens comparativas, usufruir da oportunidade de produzir energia limpa e barata ou facilitar os incentivos às iniciativas verdes e azuis. E sobretudo reforçando a transparência e o combate à burocracia, porque os impostos altos não são o único ou maior obstáculo à entrada de investimento estrangeiro. Em suma, precisamos de ser um país que precisa de imigração, mas de mão-de-obra qualificada e capaz de gerar um valor exponencialmente mais alto – e isto ainda tem a vantagem de não termos de ser exportadores de técnicos qualificados.

Sem querer alongar-me em explicações aborrecidas e técnicas, vou socorrer-me de uma metáfora: queremos ser apenas os eternos engraxadores de sapatos dos países ricos da Europa? Se queremos continuar com o negócio de engraxar sapatos, teremos de contratar mais imigrantes para fazer o trabalho pesado e sujo. Sim, é verdade que somos nós que produzimos a nossa própria graxa com fundos dos países ricos. E até tivemos a ideia brilhante de colocar mais sebo e assim diminuir os custos. É certo que engraxar sapatos não dá muito dinheiro, mas sempre podemos apanhar do chão as moedas atiradas pelos turistas ricos de economias desenvolvidas. O que fazer então para continuar a produzir riqueza e contribuir para o crescimento? Segundo alguns colegas, temos de expandir para mais lugares onde os sapatos precisam ser limpos: contratar mais trabalhadores e ir para onde os ricos vivem ou trabalham. Não podemos ser como eles e aproveitar os nossos recursos únicos ou investir em áreas mais atrativas, de forma a dar um salto no desenvolvimento económico e social. Afinal fomos feitos para engraxar sapatos.

É este o Portugal irreversivelmente pobre que estamos destinados a ser? Ou ainda temos aquela alma combativa e empreendedora de que sempre nos orgulhamos? Sei que alguns querem distorcer a História e tornar os nossos melhores tempos em vergonha ou embaraço. A conclusão final é que podemos ouvir esses velhos do Restelo, disfarçados de progressistas e liberais; ou podemos seguir os passos dos nossos antepassados e voltar a tornar Portugal nessa nau sem medo, capaz de liderar o desenvolvimento económico e social.