Volvidos dois anos desde que tomei posse como bastonário da Ordem dos Médicos, altura em que me comprometi a colocar a relação médico-doente no topo da minha agenda, foi possível concluir e passar para consulta pública um documento inédito a nível nacional e internacional e estruturante para o futuro da qualidade e humanização da Medicina. Por uma feliz coincidência, a apresentação deste trabalho coincide com o Dia do Doente – e são os doentes que estão na génese de tudo isto.

Nesta semana, o Conselho Nacional da Ordem do Médicos apresentou os “Tempos Padrão para as Consultas Médicas”, um documento desenvolvido com os contributos dos Colégios das Especialidades e Competências e das Secções de Subespecialidade da Ordem dos Médicos, que aponta o caminho de uma ponderação técnica e científica na definição dos tempos padrão de consulta.

Vivemos num era extraordinária para vários setores de atividade e a saúde não é exceção. Contamos hoje com meios técnicos e tecnológicos que até há pouco tempo seriam inimagináveis. Todos os dias chegam ao mercado medicamentos e dispositivos médicos que permitem que tratemos melhor os nossos doentes e que lhes devolvamos tempo de vida e qualidade de vida.

No entanto, infelizmente, existem práticas e metodologias de trabalho – muitas delas forçadas pela tecnologia imposta acriticamente – que nos fizeram dar alguns passos atrás. A Medicina e a relação médico-doente estão a ser ameaçadas nos seus princípios fundadores. A humanização é a base da nossa profissão e tem sido colocada em causa por formas de gestão e de administração que não têm sabido reconhecer à saúde a sua condição única em termos éticos e deontológicos.

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A escassez de recursos e a linha vermelha em que, muito em particular, vive o nosso Serviço Nacional de Saúde não pode ser desculpa para tudo. Não é admissível que os nossos doentes, em momentos de grande fragilidade e necessidade que um dia a todos nós podem afetar, sejam confrontados com situações de elevada pressão e condições de trabalho impostas pelo poder político, que resultam em desprezo e desrespeito pela dignidade humana – situações essas que também nos colocam a nós, médicos, em sofrimento ético.

Tentar dar resposta a 20 ou 30 doentes numa manhã, permitindo que estejam com o seu médico escassos minutos, não é uma forma de garantir ou aumentar o acesso. O aumento do acesso aos serviços de saúde não pode ser medido por folhas de Excel que se limitam a somar números de consultas e não pode ser feito à custa de uma quebra na qualidade que – ironicamente – acaba por atentar contra o próprio sistema, ao propiciar que os doentes não retirem desse momento de contacto todo o potencial. Aliás, não será certamente um acaso que muitas das atuais queixas relacionadas com os serviços de saúde refiram de forma crescente a falta de tempo no atendimento ou os atrasos nas consultas, marcadas com intervalos acríticos e impraticáveis quando se pretende extrair efetivo valor daquele momento.

É neste contexto, e reconhecendo que na sociedade atual será sempre essencial organizar os tempos de trabalho, que assenta a fundamentação para definir os tempos de referência na marcação de consultas e que teve por base um conjunto variável de indicadores, de acordo com a especialidade em causa. No fundo, dito de forma simples, estamos a determinar o intervalo padrão que deve mediar entre a marcação de uma consulta e a consulta seguinte – seja no setor público, privado ou social. Ainda que cada doente e cada médico tenham o tempo que entenderem necessário, esta intervenção e debate público centram-se na necessidade de melhor organizar o trabalho e proteger o tempo da relação médico-doente.

Para encontrar estes tempos padrão foram ponderados indicadores onde se incluem, entre outros, os seguintes: a experiência nacional e internacional; o tipo de consulta (primeira ou subsequente); a complexidade da doença ou do doente (multimorbilidade e polimedicação); o tempo para a receção do doente; a avaliação biopsicossocial; a análise da história clínica; o exame físico; a explicação da situação clínica ao doente, das propostas de exames auxiliares de diagnóstico e das potenciais propostas terapêuticas; o tempo para esclarecer dúvidas que possam existir sobre a situação clínica da parte do médico ou da parte do doente; o tempo para explicar ao doente as opções terapêuticas, as respetivas eficácias e complicações, e obter o consentimento informado; a morosidade da utilização dos sistemas informáticos; a necessidade de realizar relatórios ou outros documentos; a presença de médicos internos em formação ou estudantes de medicina; a realização concomitante de procedimentos próprios da especialidade durante a consulta.

Não obstante o propósito deste trabalho, respeita-se e compreende-se as características próprias de cada uma das disciplinas médicas reconhecidas, a autonomia e diferenciação dos seus profissionais, assim como a heterogeneidade dos serviços, unidades e hospitais em que as mesmas são colocadas em prática. Por esse motivo, as recomendações que são feitas neste documento não constituem norma prescritiva, sendo suscetíveis de adaptação à relação que os médicos estabelecem com os seus doentes.

Espero que este documento estruturante seja um primeiro passo para desfazer as teias que têm transformado a nossa profissão numa espiral burocrática que nos condiciona permanentemente, que dificulta a nossa missão e que impõe uma barreira ao nosso trabalho e à humanização da relação médico-doente. Humanizar os cuidados de saúde é uma obrigação de todos, que começa na adoção de comportamentos que salvaguardem a educação e a ética universal. É preciso tempo para nutrir e reforçar esta relação. Temos connosco os nossos doentes. Esperamos agora que o poder político nos acompanhe a todos nesta aposta numa saúde mais forte e de qualidade humana e técnica.

Bastonário da Ordem dos Médicos