A minha liberdade é minha. Sem ela não posso amar. A liberdade é constitutiva do meu ser pessoa e do ser pessoa dos outros. Sem ela não posso deixar-me amar. A minha liberdade constrói relações com os outros. A liberdade dos outros permite-lhes construir relações comigo. A minha liberdade e a liberdade dos outros constroem comunidades.
A minha liberdade pode destruir relações. Com outro. Com vários outros. Com todos os outros. De igual modo, a liberdade dos outros pode destruir relações. Comigo. Com vários outros. Com os outros todos, entre os quais eu me encontro. A liberdade — minha e dos outros — pode destruir comunidades.
Como?
De muitas maneiras posso diminuir a minha liberdade. E a liberdade dos outros. Assim como prejudicar as minhas relações com eles e eles a sua relação comigo. Mas destruir definitivamente a liberdade, aquela liberdade constitutiva da pessoa, destruir definitivamente as relações e, em última análise, a própria comunidade só se consegue matando.
Quando uma liberdade escolhe a morte da pessoa em que habita está a matar-se a si própria. A isto chama-se suicídio. Quando uma liberdade pede a outra que a destrua — destruindo o próprio corpo que a sustenta — e essa outra anui ao pedido da primeira, está a matá-la. E agora o nome desta acção é homicídio. Homicídio a pedido da vítima, chama-lhe o nosso Código Penal. Para a distinguir do homicídio contra a vontade da vítima, mais grave (pelo menos cinco vezes mais grave, a julgar pela pena prevista).
Tudo isto para dizer que a vida não é só liberdade (de viver e de morrer). Mas também para mostrar que acabar com a vida, através de um acto livre, é necessariamente acabar com a liberdade. Sem retorno possível. Porque a liberdade não tem o poder de voltar à vida.
Conclua-se.
Quando alguém se suicida está a autodestruir a sua liberdade. Quando alguém pede que o matem está a pedir que lhe destruam a liberdade. E entre estes dois casos há uma enorme diferença comunitária, escondida sob a aparência de um mesmo resultado: na segunda hipótese ocorre um homicídio, A mata B, A utiliza a sua liberdade para infringir a norma que protege a condição de possibilidade das relações comunitárias e que se enuncia deste modo, na mais simples das suas formulações — «não mates outra pessoa».
Há, pois, uma diferença entre a liberdade de morrer e a liberdade de matar. E é esta diferença que os projectos de lei que pretendem a legalização da eutanásia a pedido parecem não entender. Assim como outra nuance. A condição para que o pedido «matem-me» seja atendido não se fica pela manifestação dessa vontade séria, livre e esclarecida. A comunidade — através do legislador e, depois, dos pareceres médicos — escolhe criteriosamente que vidas podem ser destruídas. E sentencia: sou eu — não tu — que fixo o tipo e o grau de sofrimento que me parece justificar a tua morte livre. E mais uma vez assistimos àquela discriminação de vidas, à sua divisão entre as que não importa destruir e as que não faz mal desaparecerem. As vidas não possuem todas, afinal, o mesmo valor comunitário. Receio que os tais projectos de lei tão-pouco reparem na machadada que vibram num dos princípios mais caros de toda a vida em sociedade: o da igualdade.
Professora da Faculdade de Direito de Coimbra