Com tudo o que se tem passado no rés do chão do meu País, difícil tem sido compor emoções e ideias quanto ao que se tem visto. Bem, quanto ao que se tem visto e quanto ao tudo que só se tem visto, em exclusivo. Antes do mais é-me urgente dizer o seguinte: quando os tubarões cheiram sangue, não há sangue algum que lhes fuja, ainda que, a certa altura, o sangue das mandíbulas abertas ao máximo de quem morde e as coxas mordidas de quem tenta sempre, sem sucesso, fugir aos dentes afiados acabem por se confundir num só jorro desmedido e vermelho próprio de stop à compaixão. Tem-me parecido claríssimo isto: a certa altura a perseguição mediática é tão feroz e selvagem que, inevitavelmente, voam inocentes-quase-culpados e culpados-quase-inocentes à revelia dos princípios democráticos que tendem a fundar, formalmente e quando conveniente, a existência contemporânea. Mistura-se tudo, talvez precisamente para torvar as vistas de quem ainda procura ver no meio do caos e quase consegue sem já nunca conseguir efectivamente. Tem sido dificílimo, nos últimos dias, encontrar um discurso coerente que não esteja entregue à gritaria que ensurdece ou ao engodo lamacento que muitas palavras usa mas todas não conseguem passar de uma pasta pesada e cinzenta de puro cimento. Pois. O cenário é este: o País ruiu, ouve-se. É a crise do regime, ouve-se. O fim dos fins, ouve-se. Acabou, ouve-se também. Mas a estas declarações, provindas sabe-se lá de onde, sobrepõe-se que a vida dos Portugueses continua a empurrar ponteiros, não para a frente, mas precisamente para trás, cada vez mais conscientes que nada os ajudará em boa verdade. Pensou-se que os novos tempos poderiam trazer uma nova forma de agir, mas continua tudo tão… tacanho. E, a propósito, perguntaram-me: sotor, porque raio tenho eu de jantar sempre com este tipo que pisca o olho à minha mulher diariamente? Pode sempre mudar de canal, meu caro, responderia em jeito de graçola libertadora de tensões manifestas, mas pelo meu caro, foi acrescentado que o que o chateava nem era o piscar de olho do tal humano às vezes esquisito. O que o fazia espumar-se verdadeiramente era o facto de ser sempre o mesmo humano, a piscar o olho, diariamente. Dizia-me que lhe apetecia ver mais piscares de olhos: o sotor já imaginou? O Zé Pedro a piscar-nos o olho, seguido de um sorriso rasgado em código, e nós a dizer “ganda Zé Pedro” em segredo mas alto? E aí passei a perceber o que o meu caro queria dizer. Era óbvio: o meu caro estava farto até ao tutano das mesmas caras de sempre, em todo o lado. Eu achava que um dos requisitos da liberdade livre era a alternância, desabafava enquanto eu nada dizia, envergonhado por uma situação que não havia promovido mas me era imputável já que uma pessoa é inevitavelmente a cidade inteira. E por isso foi tão difícil compor ideias e emoções sinceras e racionais quanto ao que se tem passado no meu País. No meu País, de que gosto muitíssimo pelos bravios motivos confessados que quem me conhece já sabe, veio a público uma alegada história macabra de pressões para alcances de fins impossíveis e teias de influência infinita. Inédito? Não. Ofensivo? Totalmente. Veja-se, há quem entenda que pode tentar (e conseguir acaso colha sucesso) influenciar decisões que ao cidadão normal são vedadas. O sotor já viu? É como se não existíssemos para aquela malta! Fazem-nos sentir humanamente diminuídos, suplicava o meu caro, quando o reencontrei no segundo dia a seguir à primeira notícia da grande polémica do governo. Humanamente diminuídos, ecoava-me arrancado da boca do meu caro, que levantava-se, colava o sorriso na cara e ia buscar os filhos à escola, depois de um par de minutos à espera de um autocarro que aparecia lotado e o obrigava a ir a pé, aos pontapés no centro do seu sorriso já caído que a certa altura seria pontapeado, sem intenções de recolha, em gestos de ombros acima e abaixo à vida, para os confins de um veículo alheio, velho e esquecido. É isto que é verdadeiramente inglório! O assassinar de esperanças tidas pelas pessoas esplêndidas que povoam o meu País! Sim! Os factos ilícitos soçobram à justiça. A justiça, se minimamente justa, fará de si mesma um destino: encontrando-se. Mas e os sorrisos que vejo roubarem, ano após ano, década atrás de década, ao meu País? Para onde vão? Voltarão? Isto é o gravíssimo que está a pôr em risco o futuro da democracia no meu País e ninguém admite: o crescimento da raiva em lugar do sítio onde devia haver sorrisos rasgadíssimos de esperanças vivas congregadoras! Sim!! É isto, alguém que o admita e, de uma vez, proponha-se a trabalhar o crescimento humano, a participação cívica, a lucidez democrática e tudo o que resultará num progresso real da humanidade! O dinheiro, sotor… isso não dá dinheiro, dizia o meu caro no terceiro dia a seguir à tal notícia, ao qual, desta vez, vi-me obrigado a responder que dinheiro podia não dar, mas uma riqueza das grandes dava com toda a certeza. O meu caro soltou uma gargalhada, procurou mais um buraco do cinto suíço que lhe agarrava antes a antiga barriga até notável e lá foi, num repetir de rotinas que se esgotarão per si, sempre. É esta apatia, expressada em esgares de indiferença e desesperança, que se tem de combater, independentemente dos escândalos e casos que possam surgir. Situações do género poderá havê-las sempre, em especial por parte de quem menos se espere, possivelmente. Mas há uma coisa, essa sim obrigatória, o meu País tem de conseguir ter esperança e sorrisos verdadeiros. Restará encontrar quem pense, e inclua, verdadeiramente, as pessoas do meu País numa das pérolas mais velhinhas do mundo: o meu próprio e único País, de rostos ao alto.
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Quando os tubarões cheiram sangue, não há sangue algum que lhes fuja
O País ruiu, ouve-se. É a crise do regime, ouve-se. Mas a estas declarações sobrepõe-se que a vida dos Portugueses continua a empurrar ponteiros. Não para a frente, mas precisamente para trás.