Ainda vale a pena discutir este assunto? Se há quem escreva sobre ele, é porque deve valer, ou então é sintomático de que não temos todos nada melhor para fazer do que rebater os argumentos uns dos outros. E com que fim, afinal? Ou ser aplaudido por aqueles que pensam como nós ou ser verbalmente linchado por aqueles que discordam. Admito que tudo isto, quando analisado ao pormenor, não passa de um exercício de vaidade intelectual, mas há que rir de nós próprios.

É uma guerra de forças este universo da opinião, e nem a ciência nos salva, porque, convenhamos, nem eu, nem nenhum cronista, (nem ninguém que esteja a ler este artigo) se vai dar ao trabalho de ir ler os milhares e milhares de artigos médicos, científicos, filosóficos, existenciais, etc… cada um em contradição com todos os outros e a refutar os resultados do artigo anterior.

Ponto 1: Não sejamos hipócritas

Nem os que afirmam que o aborto voluntário não é um direito da mulher nem os que afirmam, como eu, que o aborto voluntário é um direito da mulher. Nenhum de nós vai reunir todas as informações suficientes para dar um argumento suficientemente válido à outra parte. Hoje em dia, dizer que a ciência evidencia tal coisa, infelizmente já não é argumento suficiente para quase nada. Há médicos e cientistas que de facto evidenciam que há vida humana a partir do momento da concepção, mas também há médicos que dizem o seu contrário. Por exemplo, o Professor de Obstetrícia e Ginecologia, Richard J. Paulson, da Keck School of Medicine, na Califórnia, sugere o que considero um bom argumento (que sirva a quem o quiser calçar): Paulson argumenta que a vida humana não começa na fertilização do óvulo, porque a) o óvulo dentro do corpo da mulher já estava vivo, b) os espermatozoides no corpo do homem já estavam vivos, logo c) o zigoto (a junção dos dois organismos que já estavam vivos) também está vivo. Mas destruir algo que esteja vivo não é sinónimo do seu assassinato (e talvez fosse preciso ter mais cuidado e sensibilidade ao usar a palavra assassinato nos dias de hoje, digo, para as coisas que realmente o são).

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Pensar que o óvulo da mulher sozinho não é uma vida humana, mas que o óvulo unido com o espermatozoide já o é, é um pensamento dicotómico, diga-se, de tudo ou nada. É antes um pensamento mágico, quase religioso. A fertilização não é instantânea, não é linear, não é sempre perfeita. A mulher não mata uma vida de cada vez que menstrua e o seu óvulo não é fecundado, tal como o homem não mata uma vida (ou milhares de vidas) quando ejacula. Tal como um zigoto não vai ser morto. É muito forte usar a palavra matar, e espanta-me a leviandade com que se fala do “assassinato dos fetos”. E não, não sou a favor do “assassinato de bebés”, mas a ciência evidencia que um zigoto e um feto não são bebés. Ser vida, e estar vivo, não é a mesma coisa que ser uma vida humana. Tal como o trevo de quatro folhas que tantos arrancámos da terra, ainda vivo, não é uma vida humana.

Ponto 2: Há citações suficientes para todos

Foi citado esta semana, num artigo de opinião publicado no Observador, intitulado precisamente “O aborto voluntário não é um direito da mulher”, um ilustre e excelentíssimo professor universitário, filósofo, jurista, entre outras coisas, o Professor Norberto Bobbio, que compara um suicida a um feto, com a diferença de que o feto não tem a escolha de ser morto. Hoje, graças à beleza da liberdade de expressão, citarei eu o também excelentíssimo Professor de Obstetrícia e Ginecologia, Richard J. Paulson. Foi Paulson quem escreveu, e passo a citar, “vale a pena repetir que o facto de a vida humana começar na concepção é um conceito religioso, e não científico”. E atenção que nenhuma citação descredibiliza a outra.

Ponto 3: A síndrome da Madre Teresa de Calcutá

Ah, a vontade férrea do sacrifício, a culpa judaico-cristã… já lá chegamos.

Richard Paulson, com uma longa carreira como obstetra e ginecologista, revelou uma história de uma paciente sua, que durante largos anos passou por inúmeros tratamentos de fertilidade, até que engravidou. Paulson descreveu a alegria com que visualizaram os batimentos cardíacos fetais, mas eis que, infelizmente, pouco tempo depois, descobriu-se que o feto era anencefálico, uma patologia letal caracterizada pela ausência de partes do crânio. Caso a gravidez prosseguisse, o bebé nasceria com uma expectativa de vida muito curta. Mas e se a gravidez não pudesse ter sido interrompida? As perguntas que o Doutor Paulson faz mais à frente é que são verdadeiramente interessantes. Paulson pergunta-se, e cito, “Esta mulher seria forçada a levar a gravidez até o fim, mesmo que a criança não sobrevivesse? Fingiria meses em público, enfrentando perguntas bem-humoradas sobre o sexo do bebé como “já escolheu um nome?” Será que ela escolheria, em vez disso, isolar-se do mundo durante a gravidez? Escolheria viajar para um estado com leis menos medievais? O cenário macabro de ser forçada a manter uma gestação contra a sua vontade e sem qualquer tipo de lógica enche o meu cérebro médico com um profundo sentimento de raiva e de injustiça, especialmente tendo em conta a observação óbvia de que apenas aqueles com útero são confrontados com esta chocante escolha social.”

Ora, aqui está uma ideia sobre a qual nunca poderemos saber o resultado, mas admiro muito que um homem a tenha posto em cima da mesa. Eu, tenho para mim que se os homens pudessem engravidar, já ninguém queria mexer nos direitos voluntários do aborto. E duvido muito que algum homem quisesse abdicar do direito de ter um bebé que não deseja, ou um bebé que vai nascer incapacitado. Mas nunca saberei, porque a verdade é que os homens não conseguem ter bebés na barriga. Mas talvez se esse exercício da teoria da mente, de nos pormos no lugar do outro, fosse feito mais frequentemente, tivéssemos a resposta a tantas perguntas. E, vocês, homens, e se pudessem engravidar todos os meses desde que têm 11/12/13 anos, como seria? (não é uma provocação, é mesmo uma sugestão de reflexão interna).

Para mim, enquanto ser humano (não, não é enquanto mulher), também é macabro que alguém considere aceitável permitir uma gestação que vá causar sofrimento na mãe, no pai, nos irmãos, no futuro bebé. Quantos de nós (realmente) seriam capazes de manter a gravidez de um bebé, de ter um bebé, de ver nascer um bebé praticamente sem crânio, praticamente sem respirar? Pensem mesmo bem nisto, visualizem, imaginem. Quantos de nós, homens, mulheres, o que seja, cuidaríamos desse bebé até aos 18 anos ou até à morte? Quantos de nós íamos ter o bebé de uma violação? Quantos de nós íamos deixar as nossas filhas ter os bebés de uma violação? Quantos de nós íamos deixar as mulheres com quem casámos terem os bebés de uma violação? Quantos de nós íamos ser moralmente impecáveis para conseguir criar os bebés de uma violação na mesma casa onde criamos os filhos que concebemos com a nossa mulher? Quantos de nós íamos conseguir ter um bebé não planeado só porque é “moralmente e religiosamente correcto” para depois viver com o sofrimento e a dor de o ter dado para adopção? Quantos de nós querem um filho por aí que não possam criar? Quantos de nós seriam capazes? Quantos de nós dizem que seriam capazes, mas nunca o fariam?

Se são todos capazes, então admiro-vos intensamente e honestamente (e até desejo conhecer-vos), porque eu não seria capaz. Mas cheira-me, que se tivermos a ousadia e a honestidade de ser verdadeiros, seríamos muito poucos de nós.

É quando nos apercebemos de que não somos Madres Teresas de Calcutá que os argumentos têm verdadeiro valor. Eu e qualquer pessoa podemos argumentar tudo o que bem quisermos, mas se não formos capazes de o aplicar na prática, o que é que isso diz sobre nós? E talvez seja fácil dizer que somos capazes, quando nunca nos deparámos com essa escolha.