A Cooperação Técnica-Militar (CTM) iniciou-se em 1978 como sendo um dos importantes objetivos do Estado Português. No fundo, trata-se de um dos eixos fundamentais da política externa do país, virada para a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e, centrada inicialmente na valorização e no reforço do relacionamento entre Portugal e os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), estendeu-se a Timor-Leste a partir de 2002. Sendo conduzida no âmbito do Ministério da Defesa Nacional (MDN), em concertação e coordenação com o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), conheceu a primeira orientação estratégica em 1999, num documento denominado “A cooperação portuguesa no limiar do século XXI”. A CTM encontra-se estruturada em Programas-Quadro bilaterais, de carácter indicativo e flexível, que integram Projetos concretos a executar no terreno, essencialmente dirigidos à capacitação das Estruturas Superiores da Defesa Nacional e das Forças Armadas daqueles Países, bem como à capacitação destas últimas e à formação dos seus quadros militares. É bom que se diga que tem conhecido, ao longo de todos estes anos, repetidas afirmações públicas que a CTM corresponde a uma das mais bem-sucedidas fórmulas da cooperação portuguesa, se não a mais bem-sucedida. Cabe à Direção-Geral de Política de Defesa Nacional (DGPDN) a coordenação da CTM e a Direção dos Serviços de Cooperação Técnico Militar (DSCTM) o seu estudo, planeamento, coordenação e avaliação, sem prejuízo das competências próprias do MNE. Dos seus Objetivos Permanentes, Políticos e Estratégicos conforme expresso pela DGPDN, consta:
“Contribuir para a afirmação da presença de Portugal no mundo, através da atuação das Forças Armadas Portuguesas (FFAA) como instrumento da Política Externa do Estado; (…) Contribuir para a segurança e estabilidade interna dos PALOP e de Timor-Leste através da formação das FFAA apartidárias, subordinadas ao poder político e totalmente inseridas no quadro próprio de regimes democráticos; (…) Apoiar a organização, a formação e o funcionamento específicos das FFAA de cada país; (…) Apoiar, através da consolidação da formação de unidades militares e serviços de apoio, o emprego das FFAA dos PALOP em Operações de Apoio à Paz, Humanitárias ou de Gestão de Crises, sob a égide da ONU ou de Organizações Regionais de Segurança e Defesa.”
Nos PALOP e em Timor-Leste, a CTM, no geral, tem-se traduzido na formação de FFAA apartidárias como fator estruturante do Estado. Por sua vez, no apoio à formação de estruturas militares, em Portugal, a CTM tem-se focado na formação na Academia Militar e na Escola Naval. Nos últimos anos, a colaboração bilateral tem passado a incluir a fiscalização de espaços marítimos ou na cooperação nas missões de transporte geral de evacuações sanitárias realizadas por um destacamento da Força Aérea Portuguesa.
Em concordância com a sua aceite relevância, Portugal tem contemplado, nos planos de cooperação externa, a necessidade de manter a CTM como um vetor da política externa e parece haver uma sintonia entre os parceiros intervenientes, do MNE, MDN, DGPDN, IPAD aos diversos ramos das FFAA para a concretizar. Porém, será que pode ser considerada como “cooperação”? Sendo certo que Portugal tem ganho respeito e admiração com estes programas, o termo cooperação é mal aplicado porquanto o apoio que Portugal presta aos PALOP e o Timor-Leste no âmbito das CTM não resulta em maiores benefícios militares, sociais ou económicos para o Estado Português.
Por outro lado, estes programas de cooperação também procuram dar corpo a interesses não explícitos de Portugal em matéria de parcerias económicas e, num ambiente global com a intervenção de outros países europeus e dos Estados Unidos, como ainda a aumentar a influência militar da NATO na região, mas o resultado é muito limitado, senão nulo mesmo. Sendo também certo que Portugal conta com uma grande experiência na área militar e de cooperação internacional, capacidade tecnológica e apoio da EU, empenha recursos financeiros e militares que fazem falta ao País. De acordo com os últimos relatórios estatísticos publicados pela Defesa Nacional (o último data de 2020), Portugal empenha nestes programas mais de 6 milhões de euros/ano sendo que 50% deste investimento é feito à custa do orçamento dos Ramos, já de si exíguos. Nos diversos programas, pelos diversos Países mais de uma centena de militares, na sua maioria do Exército, seguido da Marinha e um residual da Força Aérea, são empenhados além-fronteiras, no que resulta uma melhoria dos seus baixos salários a par do sacrifício do afastamento familiar e pouco mais. A língua portuguesa pode servir para abrir portas em África, Brasil e Timor-Leste, mas, do lado dos PALOP e Timor-Leste, o ambiente é fortemente afetado pela instabilidade política, pela insegurança e outros problemas sociais, o que prejudica seriamente estes programas, que raramente atingem uma percentagem de execução razoável.
Porém, convém não esquecer que a CTM é, no seu conjunto, uma política e assim, para ser avaliada, terá de o ser País a País, e nos tempos que vivemos, é importante que o MDN assuma a indispensabilidade dessa avaliação, quer quanto ao grau de satisfação dos objetivos formulados, mas sobretudo quanto ao custo-eficácia. Ora, basta atentarmos no que nos últimos dias se tem noticiado, por exemplo, em São Tomé e Principe e na Guiné, para que no que respeita à reflexão sobre o grau de satisfação de objetivos, fazer todo o sentido repensar esta cooperação, que não devia deixar de ser sempre uma via de dois sentidos, em que, pelos vistos, Portugal nada beneficia. A seriedade de uns e de outros, a qualidade e o profissionalismo dos militares portugueses envolvidos, o valor da língua portuguesa como elemento comum e a afinidade cultural são os pilares da CTM, e se estes últimos não merecem discussão, já a ausência de lealdade por parte dos PALOP merece uma ponderação sobre se Portugal tem mais a ganhar ou a perder nesta política.
Portugal, longe das infelizes e incendiárias declarações do Presidente da República sobre esta relação histórica, tem compreendido bem as prioridades dos PALOP e de Timor-Leste, não introduz perturbação no âmbito das prioridades desses Países, tem evitado paternalismos que envenenam as relações institucionais e tem sido prudente ao recusar protagonismos, quando estão em causa Estados, mas o mundo, entretanto, mudou. São Tomé e Príncipe, ao assinar com a Rússia um acordo técnico militar que prevê formação, utilização de armas e equipamento militar e visitas de aviões, navios de guerra e embarcações russas ao arquipélago, coloca a CTM com Portugal em causa e em risco, tal como o Presidente guineense, Umaro Embaló, ao garantir ao seu homólogo russo, Vladimir Putin, que o seu país pode contar com a Guiné-Bissau “como aliado permanente”, não deixa muita margem para repensar qual a posição a tomar por parte de Portugal, membro que é de todo o direito na NATO. Também Moçambique mantém uma relação de longa data com a Rússia, uma vez que as elites militar e política foram formadas na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e o próprio Estado moçambicano foi constituído com um forte apoio russo, mas onde Portugal participa com tropas na Missão de Formação Militar da União Europeia em Moçambique (EUTM Moçambique), liderada por um brigadeiro-general da Força Aérea Portuguesa e que irá ser renomeada para Missão de Assistência Militar da UE em Moçambique (EUMAM Mozambique), com efeito a partir de 01 de setembro de 2024, e que já formou mais de 1.650 militares moçambicanos das forças especiais que combatem o terrorismo em Cabo Delgado. Também aqui, quer a guerra resulte da revolta popular contra abusos de poder e falta de expectativas de melhoria da vida da população, quer seja a eclosão de uma revolta jihadista islâmica de conotações salafitas, quer seja pelo controlo da descoberta de gás e exploração de riquezas naturais – rubis e madeiras preciosas, para além dos recursos provenientes do tráfico de drogas, Portugal está ali presente e é ator do cenário, também o grupo Wagner, aqui chamado de Africa Korps ali esteve (ou ainda estará) presente e está seguramente na República Centro Africana para onde vão partir mais 215 militares portugueses, em missão das Nações Unidas, onde a situação “tem permanecido volátil e extremamente exigente, não apenas sob o ponto de vista tático, mas também ao nível individual”, como alertou o chefe do Exército, general Mendes Ferrão, na entrega do Estandarte Nacional à Força Nacional Destacada. Nada disto merece atenta e oportuna reflexão quanto à participação militar para efeitos de política externa face aos seus custos – benefícios?
A CTM é para os militares mais uma missão, como muitas outras que lhe são atribuídas, mas é perfeitamente dispensável porquanto não acrescenta valor técnico-táctico aos quadros, empenha meios já de si escassos e desgasta os curtos orçamentos dos Ramos. É uma missão que têm cumprido em difíceis condições locais, com sacrifício pessoal e empenho nem sempre acompanhado em igual esforço pelos parceiros. Muitas vezes nem as necessidades básicas para a realização da missão são satisfeitas em tempo útil e, basta lembrar que nem mesmo a CPLP valoriza esse facto, dado que nos Exercícios FELINO que visam promover a interoperabilidade das Forças Armadas dos Estados membros, países como Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné Equatorial e Moçambique raramente participam. Não potenciamos sequer o investimento que fazemos em formação de quadros e líderes, muitos deles a quem além das táticas militares ensinamos o Português, ao contrário dos russos que sem sair de casa, até uns “zenerais” consegue colocar nas nossas TV´s a propagandear a narrativa de Moscovo. É isto o que queremos? É isto o melhor que podemos fazer? Não, mas deixo a resposta para os estudiosos do MDN.
A CTM pode continuar a servir para o novo MDN e a sua equipa de Secretários de Estado fazerem turismo militar em visitas sucessivas aos PALOP e Timor-Leste como os antecessores, para alguns altos quadros militares apreciarem o exotismo das belezas de outras paragens, para transferirmos conhecimento NATO a favor da Rússia e China tão presentes nesses Países parceiros, pode servir para argumentação das “reparações marcelónicas” em suma, pode servir para continuarmos a exaurir recursos financeiros e meios humanos ou… pode ser um momento de reafirmação do papel de Portugal num mundo em mudança e num quadro de relação de novos atores. A escolha uma vez mais é política… a CTM será o instrumento dessa política!