As estruturas não surgem por mero efeito da vontade. Se Zeus fez nascer Atena da sua cabeça, já mulher adulta e completamente armada, uma estrutura social ou física é um trabalho de construção e resulta da interacção de muitos factores. A estrutura social está sempre ligada às ideias de longo prazo, de tradição e de prática enraizada. De igual modo, as estruturas não desaparecem por decreto, mesmo que muitos decretos almejam a mudança estrutural. Agora que tanto se tem falado em racismo estrutural nos EUA, vem a propósito debater as causas de tal estrutura. E, visto que a vida política americana tem sido dominada, desde o desaparecimento de George Washington, por dois grandes partidos – o Democrático (D) e o Republicano (R)1 – é oportuno olhar para trás e avaliar o contributo de cada um deles para a sobredita estrutura.
As vítimas óbvias do racismo estrutural nos EUA são os Negros. Foram escravizados, em condições atrozes, conforme testemunham inúmeros autores coevos como Harriet Beecher Stowe (A Cabana do Pai Tomás) e Frederick Douglass. Foram libertados, à custa de uma sangrenta Guerra Civil. Padeceram ainda de condições de vida particularmente duras, sobretudo no Sul, e percorreram um longo caminho até terem os seus direitos políticos e económicos plenamente reconhecidos, em 1964/5.
Concentremos a nossa atenção no Sul dos EUA, a maior das quatro regiões do país, onde reside 55% da população negra (que representa 19,2% da população do Sul). Esta região compreende os seguintes 16 estados (percentagem de população negra entre parêntesis): Mississippi (37,0%); Louisiana (32,0%); Geórgia (30,5%); Maryland (29,4%); Carolina do Sul (27,9%); Alabama (26,2%); Carolina do Norte (21,5%); Virgínia (19,4%); Tennessee (16,7%); Flórida (16,0%); Arkansas (15,4%); Texas (11,8%); Missouri (11,6%); Kentucky (7,8%); Oklahoma (7,4%); Virgínia Ocidental (3,4%)2.
Em traços gerais, os Democratas preponderam no Sul. Cada um destes 16 estados, desde a respectiva admissão na União, teve sempre mais governadores Democratas do que Republicanos (70% contra 20%, em termos agregados). Os casos extremos são a Geórgia (D, 69; R, 7) e a Virgínia Ocidental (D, 19; R, 16). A maioria dos estados do Sul deu a vitória aos candidatos Democratas em 35 das 53 eleições presidenciais que ocorreram entre 1796 e 2016.
Quais foram as datas, os factos e as figuras mais relevantes para estruturar a actual condição dos Negros nos EUA?
1862: Proclamação de Emancipação de Abraham Lincoln (R). Lincoln foi eleito em 1860 contra três candidatos pró-escravatura: Stephen Douglas (D), pelos Democratas Nortistas; John C. Brenckinridge, o Vice-Presidente cessante (D), pelos Democratas Sulistas; e John Bell, pela União Constitucional. É reeleito em 1864 contra George McClellan (D).
1865: entra em vigor a 13.ª Emenda, que abole a escravatura nos EUA, patrocinada3 por Lincoln.
Década de 1870: ao longo da década, os Democratas sobem ao poder em nove dos 16 estados do Sul. A partir dessas datas, o período mínimo de governo consecutivo pelos Democratas nesses estados foi de 90 anos. Casos emblemáticos são a Geórgia (131 anos), o Alabama (113 anos), o Mississipi (112 anos), o Texas (105 anos) e a Louisiana (103 anos). Fora deste grupo de nove estados, existem períodos ininterruptos de governo dos Democratas na Carolina do Norte (1901-1973), no Oklahoma (1907-1963) e no Tennessee (1923-1971). Na prática, durante estes períodos, bastava ganhar a convenção do Partido Democrático para ser governador.
De 1880 a 1910: as legislaturas estaduais do Sul dos EUA, dominadas pelos Democratas do Sul aprovam as “Leis de Jim Crow” (designação pejorativa para “Negro”), que asseguram a segregação e a inferioridade política, económica e social dos Negros. O direito de voto dos Negros foi praticamente anulado por restrições legais e práticas4.
1896: o Supremo Tribunal dos EUA afirma a constitucionalidade da doutrina “separados, mas iguais”, no caso Plessy vs. Fergusson. O acórdão foi tirado por sete votos a favor, com o voto de vencido do Juiz John Marshall Harlan, um antigo líder do Partido Republicano no Kentucky.
1939: a cantora negra Marian Anderson é impedida de actuar no Constituition Hall, uma sala de espectáculos pertencente às Filhas da Revolução Americana. Com o apoio do Presidente Franklin D. Roosevelt (D) e da Primeira Dama, Eleanor Roosevelt, o espectáculo realizou-se ao ar livre, na escadaria do Lincoln Memorial, perante uma audiência de 75 mil pessoas.
1913: o Presidente Woodrow Wilson (D) inicia a segregação na Administração Federal e no Distrito de Colúmbia5.
1948: o Presidente Harry S. Truman (D) põe termo à segregação nas Forças Armadas (Executive Order 9981).
1954: o Supremo Tribunal dos EUA declara a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas, no caso Brown vs. Board of Education. O acórdão foi redigido pelo presidente do tribunal, Earl Warren, antigo governador da Califórnia (R), cuja influência foi decisiva na passagem desta decisão e de outras semelhantes.
1957: o Governador do Arkansas, Orval Faubus (D), mobiliza a Guarda Nacional para impedir a inscrição de nove crianças negras numa escola em Little Rock, a capital do estado. Em resposta, o Presidente Eisenhower (R) coloca a Guarda Nacional sob autoridade federal e envia a 101.ª Divisão Aerotransportada do Exército dos EUA para proteger as crianças e garantir a inscrição.
1960: um movimento popular, com o apoio do Governador da Louisiana, Jimmie Davis (D), tentou impedir que quatro meninas negras frequentassem escolas em New Orleans. O tumulto popular – em que um grupo de mulheres brancas de classe média, conhecidas como as “Cheerleaders” e “As Mães de New Orleans”, teve papel proeminente – levaram o Presidente Kennedy (D), a autorizar que as crianças tivessem sempre escolta armada. Episódios desta crise são descritos em “Travels with Charley”, de John Steinbeck (Nobel em 1962), que viria a ser o redactor dos discursos do Presidente Johnson (D).
1963: o Governador do Alabama, George Wallace (D), coloca-se à porta de um auditório na Universidade do Alabama para impedir a inscrição de estudantes negros. O Presidente Kennedy (D), colocou a Guarda Nacional sob autoridade federal para obrigar o governador a recuar.
1964: Civil Rights Act. Promovido inicialmente pelo Presidente John F. Kennedy (D). Após o seu assassínio, esta reforma foi retomada pelo Presidente Johnson (D). Teve 27 votos contra no Senado (D, 21; R, 6) e 126 na Câmara dos Representantes (D, 91; R, 35). A probabilidade de ser republicano e ter votado a favor é de 2,24 para 1 (ou 69,1%). Ou seja, proporcionalmente houve mais Republicanos a votar a favor do que Democratas.
1965: Political Rights Act. Promovido pelo Presidente Lyndon B. Johnson (D). Teve 18 votos contra no Senado (D, 17; R, 1) e 74 na Câmara (D, 54; R, 20). A probabilidade de ser republicano e ter votado a favor é de 1,79 para 1 (ou 64,2%). O pleno restabelecimento do direito de voto dos Negros pode contribuir para explicar uma inversão de tendência. Em 21 das 23 eleições presidenciais realizadas entre 1876 e 1964, os Democratas ganharam na maioria dos 16 estados do Sul. De 1968 a 2016, os Democratas apenas ganharam em 1976 – 14 estados deram a vitória ao sulista Jimmy Carter, ex-governador da Geórgia – e obtiveram empates em 1992 e 1996 – com o sulista Bill Clinton, ex-governador do Arkansas. Ou seja, o voto Negro no Sul pendeu para os Republicanos.
Que podemos concluir? O Partido Democrático contribuiu pesadamente para estruturar o racismo nos EUA, seja pela passividade (ou pró-esclavagismo declarado) de presidentes como Franklin Pierce e James Buchanan, antes da Guerra Civil, seja por impor a segregação no Sul dos EUA, seja pela instauração da segregação ao nível federal, com Woodrow Wilson. Contudo, é inegável o papel que teve na redenção desse pecado, graças a presidentes como Roosevelt, Truman, Kennedy e Johnson. O Partido Republicano tem por si a gigantesca figura de Lincoln.
Ultimamente, o Partido Democrático arvorou-se em paladino dos Negros e o Partido Republicano deixou-se manchar por ligações a supremacistas brancos. Seria útil que ambos se lembrassem da sua história, que é indelével, e que ambos recordassem que são herdeiros de uma tradição.
[1] O actual Partido Democrático descende do Partido Democrático-Republicano, de Thomas Jefferson. O actual Partido Republicano descende do Partido Whig, de Henry Clay, que descende do Partido Federalista, de Alexander Hamilton.
[2] Foram utilizados os dados do Censo de 2010.
[3] O presidente dos EUA não tem poderes de iniciativa legislativa.
[4] Fremon, D. K. (2000). The Jim Crow laws and racism in American history. Enslow Publishers.
[5] O’reilly, K. (1997). “The Jim Crow Policies of Woodrow Wilson”. The Journal of Blacks in Higher Education, (17), 117-121.