Roubo é uma arte antiga, que requer a quem o pratica agilidade mental e corporal em grau eminente[nota 1], qualidades que admiramos nos outros, que nos esforçamos por melhorar em nós próprios e que as escolas se propõem desenvolver nos nossos jovens. Certamente que não é uma atividade ao alcance de qualquer um, mas apenas é praticada com sucesso pelos membros mais hábeis e capazes da nossa sociedade. Também é uma atividade com longa tradição, havendo quem a considere a profissão mais antiga do mundo, invocando o testemunho do livro do Génesis: apesar de nosso Senhor ter posto todas as árvores e animais à disposição comum dos nossos primeiros pais e dos seus descendentes (Gn 1, 28-30), e de ter reservado para si apenas o fruto de uma única árvore (Gn 2, 3), Eva, que tinha quase tudo, não resistiu à tentação de apoderar-se do pouco que não tinha, praticando o que foi o primeiro roubo da história (Gn 2,6). Desta primeira apropriação ilegítima originaram todos os males que afetam a sociedade portuguesa contemporânea, mas ao menos ficou provando, definitivamente, que o $ociali$mo não elimina a cupid€z[nota 2].
Esta atividade, ao contrário da agricultura ou indústria, não cria valor, mas sempre foi considerada socialmente importante por algumas correntes políticas nacionais devido ao seu caracter redistributivo. A arte assume múltiplas formas[nota 3], algumas das quais já foram liberalizadas, como a tributação e a expropriação (cf. Constituição da Republica Portuguesa, artigos 104.º e 165.º 1., l), enquanto outras, como o carteirismo[nota 4], estão na calha para o vir a ser, aguardando apenas a apresentação da respetiva proposta legislativa por parte de um grupo de esquerda radical no nosso[nota 5] parlamento.
Uma forma especialmente sofisticada de transferir não só a posse, mas também a propriedade, de quantias monetárias elevadas contra a presumível vontade dos seus legítimos proprietários, é a concessão danosa de crédito. O esquema, conceptualmente muito simples, na prática de execução menos fácil e exigindo elevada competência técnica, consiste em arranjar 1 emprego n1a instituição de crédito, preferencialmente a nível de diretor ou administrador, e, mandando às malvas os superiores deveres de fidelidade e diligência (art. 64.º do Código das Sociedades Comerciais), começar a conceder empréstimos a compadres e amigos, violando normas internas e ignorando pareceres técnicos. O valor social desta atividade e a sua importância para desenvolvimento nacional são tão evidentes que os poderes públicos apresentam 1a natural relutância em reprimir e punir este tipo de operações, que ainda não foram formalmente liberalizadas. Esta relutância torna-se patente porque, apesar de ser bastante fácil identificar os autores, estes nunca são acusados de nada. Ao contrário do que acontece n1 assalto à mão armada este tipo de redistribuição envolve sempre papeis com assinaturas e mails com nomes. Que a identificação dos artistas envolvidos não é muito complicada é ilustrado pelo seguinte caso, ocorrido já há três séculos, provavelmente aquele que pela primeira vez atraiu o olho do público para Ōoka Tadasuke (大岡忠相, 1677—1752) e que tornou famoso o seu nome por todas as terras banhadas pelos oito oceanos, em que as pistas deixadas pelos responsáveis da marosca foram muito mais ténues que as que se podem encontrar nos processos de concessão de crédito nas nossas Caixas:
“Num abrasador dia de Verão, um certo Yagorō, empregado no grande armazém Echigoya, famoso grossista de seda, quimonos e artigos afins em Nihonbashi em Edo, fazia entrega de um pesado fardo de pano de seda. Era pela hora mais quente do dia. O pacote moía-lhe os ombros, o Sol pesava-lhe na nuca e o suor saía-lhe dara-dara pelos poros.
“Yagorō suspirava por uma sombra onde pudesse refrescar-se e descansar um pouco, mas, naquelas primeiras horas da tarde, a penumbra projetada pelas paredes não era mais que nesga mesquinha. Eis senão quando avistou, mais adiante, uma frondosa árvore, à frente do portão de entrada e saída de um templo. Ansiando por uma pequena folga, o estafado carregador apressou o passo e, ao ficar sob proteção da árvore, descobriu que, do outro lado do grosso tronco, se erguia uma estátua a Jizō-sama, a divindade tutelar das crianças, da terra e do país. Depois de pousar a mercadoria em frente da imagem de granito, Yagorō estendeu-se na base de pedra que a suportava. Não demorou muito para que entrasse num sono profundo. E, cansado como estava, dormiu e dormiu e dormiu, e quando acordou, já o Sol se aproximava do horizonte. Fosse por ter recuperado as forças, ou por já não sentir tanto a opressão do calor, o empregado da loja das sedas sentiu de um modo indefinido que algo no universo tinha mudado durante o seu sono, e que o mundo estava diferente. Foi então que sentiu um calafrio: o seu precioso fardo de seda não estava ali, tinha deixado de existir. Nem com a vista nem com o tato o conseguia perceber. Yagorō deu várias voltas ao ídolo e à árvore, com os olhos postos no chão, varreu com as mãos as lajes de pedra onde o tinha colocado, e chegou mesmo a olhar para o alto, para os ramos da árvore, e apalpar o tronco e as suas reentrâncias, mas nem em baixo nem em cima conseguiu ver ou sentir a sua carga. Se há algo de persistente e contínuo e real neste mundo de impermanência e inconstância e ilusão, é o apego da paixão humana à fantasia de que nada muda e de que tudo é permanente e conservável. Pensou ele: ‘Se calhar os criados do templo guardaram-no, não fosse alguém levar-me o fardo…’
“Entrou, então, no recinto sagrado e, ao ver um serviçal a varrer o empedrado que levava à casa de oração, perguntou: ‘Desculpai, mas será que tereis guardado um fardo com tecido de seda que se encontrava em frente da estátua do Jizō-sama, lá fora?’
“Replicou secamente o outro: ‘Fardo? Qual fardo? Não vi fardo nenhum…’
“Yagorō ainda continuou a procurar a sua mercadoria enquanto houve luz, e a interrogar as crianças que brincavam perto e os transeuntes que por ali passavam, mas sem êxito. No dia seguinte, apresentou-se na loja e relatou o sucedido, mas ninguém acreditou nele. Dizia um colega baixinho: ‘Não será que terá vendido o pano ao desbarato e gasto o dinheiro numa noitada?’
“Disse-lhe o supervisor: ‘Seja como for, se o fardo não voltar a aparecer, tens de pagar indemnização pelos quinhentos palmos de seda que te foram confiados; e se não tiveres as vinte moedas de prata que lhe correspondem, teremos de pedir ao teu fiador que as pague por ti…’
“Ao ouvir isto o carregador ficou triste e descorçoado e deprimido. Cogitou ele de si para consigo: ‘A vergonha da minha situação atual é insuportável… mais vale suicidar-me que continuar a viver casado com esta suspeita de ter roubado. Mas morrer com a fama de ladrão vestida também é intolerável…’
“Estando nesta aflição e indecisão e agonia, surgiu-lhe de repente a ideia de apresentar queixa ao magistrado responsável, senão pela paz e harmonia e caridade, pelo menos pela ordem e tranquilidade e civilidade, na grande cidade de Edo. Reconfortado com este plano, deixou tudo e apressou-se a apresentar-se na residência do bugyō Ōoka Echizen no Kami Tadasuke. Quando os guardas o fizeram comparecer frente do grande juiz, já lá para o fim do dia, Yagorō contou-lhe a sua desventura da véspera e concluiu: ‘Assim, depois de ter procurado por todo o lado e inquirido a todos os transeuntes, desesperei de encontrar o volume que me fora confiado. Mas na loja ninguém acredita em mim, nem o meu fiador é suficientemente abastado para indemnizar quinhentos palmos da melhor seda do Miyako. Assim, rogo a vossa compaixão, ó honorável garante da justiça, e imploro que investigues este caso e que me ajudes a recuperar o fardo que me desapareceu.’
“Na grande sala de audiências onde Echizen no Kami recebia as queixas e passava as sentenças fez-se, por breve momentos, um silêncio profundo. Após uma curta pausa, Ōoka disse em voz alta, de modo a poder ser ouvido por todos os presentes: ‘Originariamente, o Jizō-sama é considerado como sendo o protetor das pessoas e da Nação, e é por esta razão que as suas estátuas são esculpidas e colocadas profusamente pelas ruas e estradas deste Império e do povo recebem veneração e adoração. Também este Yagorō, confiando na proteção da estátua do Jizō-sama, deixou descansado quinhentos palmos de seda do Miyako à sua frente, enquanto repousava do seu cansaço. Foi sem dúvida durante o sono de Yagorō que a seda se sumiu. Mais do que uma possível incúria do transportador, é ao Jizō-sama que deve ser imputada negligência na sua função de proteção e no seu dever de vigilância. Assim, ordeno que esse Jizō seja preso e manietado e seja amanhã apresentado a este tribunal por suspeita de cumplicidade com aquele que roubou a seda.’
“Ao ouvir isto, oficiais e assistência mal conseguiram reprimir o seu espanto. O absurdo da ordem assegurou que nessa noite todos falassem e comentassem o assunto, e que, logo pela manhã do dia seguinte, se congregasse à volta da figura sagrada uma numerosa multidão de curiosos, que queria testemunhar o inédito da prisão de uma estátua. Pela hora da cobra, chegaram três oficiais com seis operários e uma carroça. Os oficiais deram-lhe ordem de prisão e amarraram-na com uma pesada corrente de ferro à sua volta. Depois, os operários puseram-na em cima da carroça e deram início ao seu transporte. O progresso da procissão oficial pelas ruas da cidade até ao tribunal foi seguido por um denso rio de gente não-me-empurres-não-me-empurres. Quando finalmente chegaram, a estátua foi levada para a sala de audiências e a multidão, sem oposição por parte da guarda dos portões, seguiu-a, encheu a câmara e transbordou pelo pátio fronteiriço, que ficou preto de povo como bago de laranja coberto de formigas.
“Assim que Ōoka entrou na sala e tomou o seu lugar fez-se silêncio. O magistrado deu início à audição e dirigiu-se diretamente ao Jizō-sama: ‘Se vós, que estais revestido de um corpo de Buda e recebeis a estima e confiança das multidões, de algum modo negardes que nada sabeis sobre o roubo da seda que este Yagorō anteontem transportava, mais não sereis que um grande mentiroso. Mas se, sabendo quem foi o ladrão, o não o denunciardes aqui, mais não sereis que o seu vergonhoso cúmplice. Portanto, ó Jizō-sama, dizei-me toda a verdade.’
“Apesar desta admoestação, a estátua permaneceu muda e quieta e impassível. Irritou-se o magistrado: ‘Não dizeis nada? Yagorō quando pôs o seu carregamento à vossa frente confiou-o à vossa vigilância e proteção. O desaparecimento da sua mercadoria deve-se à vossa negligência e descuido. Mas se me revelardes a identidade do ladrão mostrareis que não sois seu cúmplice e podereis sair daqui livre. No entanto, se vos obstinardes no vosso silêncio e não colaborardes na identificação do criminoso, ficareis preso e acorrentado no calabouço até que a vossa vontade se reforme.’
“Ainda assim, a testemunha manteve-se silenciosa. Echizen no Kami continuou ora a instar com ela para que colaborasse com as autoridades, ora a reprimi-la pela negligência do seu dever de proteção. A assistência estava assombrada com o espetáculo, mas, de repente, o assombro cedeu sob o peso do ridículo e todos começaram a rir, dando sonoras gargalhadas. O juiz gritou: ‘Silêncio! Nesta sala decide-se sobre a vida e a morte e rir é, neste lugar, sinal de desrespeito. Todos o que se riram agora são condenados a pagar uma multa de uma moeda de prata por cabeça. Que ninguém saia sem pagar a multa.’
“Uma moeda de prata naqueles tempos representava uma fortuna. Imediatamente todos começaram a pedir desculpa e a lamentarem-se pelo sucedido e a arrependerem-se da sua curiosidade. O magistrado vendo a consternação geral anunciou: ‘Embora por princípio o desrespeito ao tribunal seja uma ofensa imperdoável, rir não é um crime grave. Atendendo que o caso aqui em consideração respeita ao roubo de tecido de seda remito a multa de uma moeda de prata à entrega a este tribunal de um palmo de pano de seda. O prazo de pagamento da multa é de três dias.’
“Então, toda a assistência saiu do tribunal, mais de quinhentos em número, mas só depois de declararem e registarem o seu nome e morada. Quando ao fim de três dias todas as multas tinham sido pagas, Ōoka mandou chamar Yagorō e disse-lhe: ‘Vê se encontras neste conjunto de pedaços de pano de seda aquela que te foi roubada.’
“Yagorō encontrou de facto vários pedaços que pertenciam ao carregamento que fazia. Os que os tinham entregado foram, então, interrogados sobre quando, a quem e onde as tinham adquirido. Assim se identificou o vendedor e este denunciou os dois larápios que lhe tinham fornecido os quinhentos palmos de seda subtraídos a Yagorō. Ōoka ordenou que o comerciante devolvesse o pano, que ainda sobrava na quase totalidade, ao carregador. Os ladrões, depois de confessarem, foram decapitados. E os que tinham sido condenados a pagar um palmo de seda por desrespeito ao tribunal foram convocados por um edital público em que se podia ler:
‘Tendo os ladrões do pano de seda sido denunciados pelo Jizō-sama, foram apanhados e condenados e executados. Assim, agora se proclama a inocência do Jizō-sama e a sua libertação e restituição ao lugar a que pertence. Em regozijo por ter sido feita justiça, a multa aplicada por desrespeito ao tribunal durante a audição deste caso é indultada e o tecido recolhido será devolvido a quem o requerer.’
“Conta-se ainda que foi o próprio Ōoka quem retirou as cadeias ao Jizō-sama, e que o acompanhou no regresso a Tōsen-ji, o seu templo, em Katsushika, aonde ainda hoje pode ser visto[nota 6].”
Se pedaços de pano bastaram a Ōoka para encontrar o artista, a existência de um rasto de papel conjugado com a alegada incapacidade de identificar os autores das concessões danosas de crédito não será evidência suficiente para demonstrar que esta espécie de roubo, tal como a o uso recreativo da canábis, já não é tratado como crime na nossa república?
(O autor não segue a grafia do novo Acordo Ortográfico. Nem a do antigo. Escreve como kere.)
[nota 1] A lista de skills necessárias a um ladrão competente é longa e inclui, para além das mencionadas acima, capacidade de assumir riscos, conhecimento próprio, criatividade, competências analíticas, desprendimento e eloquência (duas características essenciais to cut losses na eventualidade de as coisas começam a correr mal), destreza, discrição, julgamento rápido e seguro (“olho” na gíria), perspicácia, planeamento, sangue frio, e, quando praticado em equipa, coordenação, solidariedade e ajuda mutua. Embora qualquer faculdade que se preze afirme desenvolver estas capacidades nas suas licenciaturas, e apesar de não faltarem perfis no LinkedIn alardeando estas competências, é patente que a esmagadora maioria da população ativa nacional ainda não obteve proficiência suficiente para tentar os feitos que celebrizaram Alves dos Reis (1896—1955) e Armando Vara, antes as emprega em ofícios que não requerem tal grau de competência. O Ministério da Educação está sensível ao problema e espera-se para breve a constituição de uma Comissão para estudar o assunto e fazer propostas concretas para resolver este problema, cuja culpa é da troika e do governo anterior.
[nota 2] Este acontecimento, ao demonstrar o caracter disfuncional e as consequências funestas do matriarcado, teve também como consequência a implantação do hétero-patriarcado, de cujos benefícios a humanidade pôde disfrutar durante os últimos milénios. No entanto, a tendência humana de tentar fazer reviver ideias velhas e sistemas falhados é perene e sem cura, e só ela explica a existência de uma Comissão para a Igualdade de Género e de um Bloco de Esquerda.
[nota 3] Na listagem de Sofocleto Lactantius (fl. séc. 3 a.C.) encontram-se incluídas as seguintes: assalto, arrombamento, burla, confisco, concessão danosa de crédito, depredação, desfalque, desvio, esbulho, expropriação, extorsão & fiscalidade, fraude, furto & impostos, latrocínio & nacionalização, peculato, pilhagem, rapina, taxas municipais & audiovisuais e tributação. Que esta última pertence legitimamente à categoria é-nos assegurado por François-Marie Arouet (1694—1778), um dos filósofos patronos dos nossos esquerdistas mal pensantes, venerado sob o nome de Voltaire. Relata-se que 1 dia, viajando com 1 grupo de amigos por uma floresta especialmente densa e tenebrosa, entraram n1a estalagem à beira do caminho. Para dissipar medos, à ceia combinaram contarem, 1 de cada vez, 1a história de salteadores. Quando chegou à sua vez Arouet começou: “Era uma vez um Diretor Geral das Contribuições e Impostos.” Tendo parado aqui os amigos instaram-no a prosseguir, ao que ele respondeu: “Esta é a história de salteadores que vos tinha para contar.”
[nota 4] Não o praticado pelos funcionários dos CTT, em que há entregas e que ainda é legal, mas o outro, o carteirismo recreativo, em que há tomadas e que ainda não é legal, mas que há de o ser.
[nota 5] Termo usado não com o significado de posse ou usufruto de um bem, mas no sentido de dano suportado, tal como nas expressões “para nosso infortúnio”, “para nosso castigo” ou “para nossa vergonha.”
[nota 6] O endereço do templo Nanzoin Tōsen, onde ainda hoje se encontra esta estátua, é: 2 Chome-28 Higashimizumoto, Katsushika-ku, Tōkyō.