A pergunta salta à vista do título do livro “Os Inimigos das Crianças: A iliteracia científica e os mitos da ignorância” (Casa das Letras, 2019), de vários autores, coordenado pelo especialista em neurodesenvolvimento Miguel Mealha Estrada e com prefácio do neuropediatra Nuno Lobo Antunes.
Serão muito poucos os pais que não querem o melhor para os filhos. Mas vivemos em tempos particulares. Décadas de medicina baseada na ciência esvaneceram os horrores da doença e da morte prematura. Os actuais jovens pais nunca viram ninguém com sarampo, não sabem de nenhuma mulher que tenha morrido a dar à luz nem perderam irmãos na infância.
É natural que muitos se sintam seguros e sabichões. A informação aparenta estar ao alcance de qualquer um que tenha acesso à internet e algum tempo livre. Mas é sempre possível encontrar uma página, um canal de youtube ou uma diarreia de tweets que pomposamente defenda qualquer disparate. Na Internet há de tudo e o seu contrário. Para tirar teimas não é difícil encontrar uma bolha de “amigos” no Facebook, que se confortam e criam uma ilusão de sentido no disparate. Quem discorda é rapidamente expulso, a blasfémia não é tolerada (é inacreditável o que se passa nos grupos de defensores da Terra Plana, por exemplo). Os algoritmos das redes sociais dão uma ajuda, pois mostram-nos preferencialmente os conteúdos com que temos mais probabilidade de interagir, que são aqueles com os quais concordamos.
E depois há os negócios. Talvez alguns comecem com pessoas auto-iludidas que querem fazer da sua epifania um modo de vida e “ajudar” os outros. Mas no fim do dia são negócios. Como escreveu o autor norte-americano Upton Sinclair “é difícil fazer um homem compreender uma coisa quando seu salário depende, acima de tudo, de não a compreender”. Qualquer corrente alternativa que confronte a medicina baseada na ciência tem associados produtos e/ou serviços. Falsos medicamentos, falsos especialistas que dão consultas, cursos e palestras, que publicam livros, etc.
Se podemos concordar que um adulto tenha uma ampla liberdade de decisão — devendo ter acesso a informação fundamentada — as decisões de saúde tomadas pelos filhos são mais delicadas. O conhecido caso do adolescente norte-americano Ethan Lindenberger, que se vacinou contra a vontade dos pais anti-vacinas quando fez 18 anos, é uma boa ilustração do problema.
O livro “Os Inimigos das Crianças” discute de modo fluído e muito bem fundamentado vários temas em que a desinformação é abundante. Por exemplo, num capítulo assinado pelo médico especialista em Medicina Geral e Familiar Armando Brito de Sá, discute-se a moda dos “doulas” e dos partos planeados em casa:
“A insatisfação actual acerca da forma como o parto decorre no contexto hospitalar não se resolve com partos em casa, que são um convite ao desastre, nem provavelmente com a introdução no sistema de pessoas bem intencionadas e modas new age. Essa insatisfação resolve-se através de modificações profundas nos serviços hospitalares de obstetrícia, aumentando as escolhas referentes ao parto e respeitando as decisões das mulheres, desde que isso não as coloque, e aos bebés, em risco.”
No capítulo seguinte, Armando Brito de Sá e a especialista em Medicina Geral e Familiar Sara Faustino, debruçam-se sobre a amamentação:
“Socialmente, estamos perante um processo complexo, com intervenção de forças por vezes contraditórias, que incluem convicções pessoais sobre o aleitamento, pressão social e laboral, forças de marketing e modelos de prestação de cuidados de saúde. Em algumas áreas, assiste-se inclusivamente a uma espécie de demonização do aleitamento artificial que é cientificamente infundado e social mente inaceitável.”
O também especialista em Medicina Geral e Familiar Flávio Rodrigo Simões discute a vacinação e os movimentos anti-vacinas, refutando alguns dos principais mitos propalados pelos seus paladinos, como o de que são dadas demasiadas vacinas em pouco tempo:
“Em primeiro lugar, muitas doenças da infância preveníveis com vacinas podem surgir muito precocemente (exemplo: tosse convulsa). Atrasar a administração da vacina pode resultar numa infecção grave. Ironicamente, o sistema imunitário da criança estará menos preparado para responder à infecção do que à vacina.
Em segundo lugar, não há evidência de que a exposição antigénica precoce «sobrecarregue» de alguma forma o sistema imunitário de uma criança saudável. pelo contrário, a evidência disponível mostra que a exposição antigénica vacinal não tem qualquer impacto no funcionamento do sistema imunitário ou no risco de desenvolver infecções.”
Também o uso da ritalina e a Perturbação da Hiperactividade e Défice de Atenção (PHDA) são abordados num capítulo assinado pelo especialista em Medicina Geral e Familiar Óscar de Barros e por Miguel Mealha Estrada:
“A PHDA não é de todo uma patologia moderna. Existe o mito de que a PHDA é uma doença da modernidade, que a PHDA está a aumentar de forma dramática, que a causa desse aumento é um sobre diagnóstico da doença em crianças que são saudáveis (…). Isto não é verdade na maioria dos cenários avaliados. Primeiro, a PHDA tem um componente genético importante: estudos de famílias, de gémeos e crianças adoptadas demonstraram que a PHDA tem uma hereditariedade que ronda os 74%.”
São abordados outros temas, como a oposição ao uso do flúor em medicina dentária (da autoria do mestre em medicina dentária Ricardo Lopes), a cirurgia em idade pediátrica (pelo cirurgião Filipe Magalhães Ramos), a anestesia em crianças (pela anestesiologista Susana Garcia Vargas), o tratamento da depressão em crianças e uso de antidepressivos (pelo pedopsiquiatra Nuno Pangaio) e a escola, brincadeiras e bullying (Ricardo Lopes). O livro é de um valor inestimável para quem pretende tomar decisões bem informadas acerca da saúde das crianças.