Desde o rescaldo das autárquicas que o país entrou num aparente prelúdio de crise política com a possibilidade (real) de não aprovação do Orçamento. Ameaças de eleições antecipadas, chantagens dogmáticas, comentários nas redes sociais, horas infindáveis de reuniões e conferências de imprensa. Enquanto isto, os combustíveis disparam, a eletricidade dispara, as matérias primas disparam, os cereais disparam e a inflação promete ser um pesado imposto sobre as famílias. No fundo, o que todos sabemos: temos o Portugal dos políticos e o Portugal real onde vivem os portugueses.
Enquanto no mundo dos políticos temos updates diários e constantes da não evolução do Orçamento, a Pordata analisou os dados do INE e divulgou um estudo onde concluí que um milhão e seiscentos mil portugueses vive, no Portugal real, abaixo do limiar de pobreza. Ou seja, no momento em que escrevo este artigo, 16% da população portuguesa é pobre. Todos sabemos que se analisarmos a história há sempre quem argumente que estamos melhores que há 50 anos, mas quando se fazem estratégias europeias para emissões zero em 2030 não se deveriam fazer esforços muito superiores para que a pobreza fosse zero? Devemos ficar satisfeitos com um “estamos melhores”?
O estudo da Pordata chegou a este número através da classificação económica, ou seja, o número de pessoas que vivem com um valor mensal abaixo de 540€. O problema, é que a pobreza é muito mais que uma questão económica, é, acima de tudo, uma questão de direitos humanos. Avaliamos de forma relativa através de uma comparação com o rendimento médio da nossa economia. Entendo a forma, no entanto, vejo-a como incompleta e, com um risco de análise. Num cenário de crise económica, que me parece evidente que irá acontecer de forma muito desafiante após esta crise pandémica, onde o rendimento médio baixa, vamos ter pessoas em clara pobreza que vão deixar de ser considerados (do ponto de vista estatístico) pobres, criando assim um viés na análise ao problema. Temos obrigação de olhar para o tema não de forma exclusiva pelo rendimento e sim através de uma avaliação da real integração e direitos básicos destes portugueses.
A pobreza não é um problema dos pobres
Se considerarmos a pobreza como um problema de direitos humanos não podemos excluir a responsabilidade que a sociedade tem no combate a este flagelo. Existe um estigma com a pobreza, uma vergonha em quem passa pelo problema, um “não querer ver” por parte de quem não a sente, e uma desresponsabilização de quem “finge” que a combate. Comecemos por uma falácia muito comum: a culpa de ser pobre é do pobre que não trabalha. Muitas vezes ouvimos isto como argumento. Deixem-me dar-vos alguns números: 9,5% dos pobres em Portugal é população empregada; 18% dos pobres são menores de 17 anos (logo não fazem parte da população ativa); e 15% dos pobres estão acima da idade de reforma e são pensionistas. E se isto já não fosse elucidativo, o cenário é muito mais grave quando retiramos os apoios sociais. Se excluirmos as transferências que estes cidadãos recebem como ajuda social, o número de pobres em Portugal seria de 42%. Leu bem, quarenta e dois por cento da população portuguesa estaria abaixo do limiar de pobreza.
É fácil concluir que não estamos perante uma falha de quem é pobre, mas sim de uma falha de uma sociedade que não consegue dar dignidade a todos, que não gera oportunidades para todos e que, claramente, não se preocupa com todos. A pobreza deveria ser, e é, um problema da nossa sociedade e uma falha grave da nossa democracia que nos envergonha e, o seu combate, deveria ser um pilar fundamental do “tal” Orçamento.
O Orçamento
O Orçamento deveria ser um instrumento que potenciasse o elevador social, que ajudasse a eliminar barreiras e que permitisse uma base comum a todos, uma base de educação, de saúde e de oportunidades. Infelizmente, o Orçamento, hoje em dia, não é mais que a forma do governo alimentar a máquina do Estado e tentar fazer face ao cumprimento da dívida. A fatura é tão pesada que quando se fala de negociação em sede orçamental, na verdade estamos a falar de umas franjas ínfimas do Orçamento onde se pode decidir, sem muita liberdade, onde alocar aquelas verbas.
O combate à pobreza deve ser estrutural e não conjuntural ou paliativo. Muito se fala da pobreza infantil, e, admito, que algum esforço tem sido feito. A título de exemplo, o alargamento do ensino público às creches, é, por vezes, garantir a alguns a única refeição do dia. Não deixando de ser importante, não nos podemos esquecer que as crianças são pobres porque vivem numa família pobre e que se a família não tiver apoio e se essa criança não tiver mais que um suporte na sua fase inicial de vida, então continuaremos a ter uma verdadeira pandemia, que, enquanto sociedade, nos temos recusado a ver. É obrigatório, é moralmente obrigatório, quebrar o ciclo geracional de pobreza. Não é possível que gerações sejam condenadas à partida porque a herança que vão ter é serem pobres. E aqui, o Estado, e o “tal” Orçamento tem muita responsabilidade.
Não basta transferir dinheiro para a educação. Há que acompanhar os jovens no seu crescimento. Referi acima que 18% dos pobres tem menos de 17 anos, mas, dentro desta faixa etária, o maior problema está entre os 12 e os 17. É fundamental criar instrumentos de apoio a quem já não é criança, mas também ainda não é adulto. É fundamental ter um ensino público de qualidade e que potencie o acesso de todos ao ensino superior. É imperativo que os jovens com uma origem não privilegiada tenham os mesmos direitos no acesso ao emprego. Isto criaria um verdadeiro elevador social, a única solução para quebrar ciclos de pobreza e garantir um futuro melhor às novas gerações e a Portugal.
Pobreza não é só ter fome
Como nota final, é importante refletir que a pobreza não é apenas não ter dinheiro para comida. É muito mais que isso. É, infelizmente, muito mais que todos nós, por vezes, nos permitimos ver. Quando somos abordados na rua por alguém que nos pede algo para comer, cingimo-nos a ver esse momento. A pobreza é muito mais complexa e com muitos eixos adicionais. Como já referi neste artigo, é um problema de direitos humanos, de direitos básicos e de uma exclusão social que começa como um problema financeiro, mas repercute-se no acesso aos bens alimentares, a vestuário, a uma habitação digna, a uma real educação, à saúde (e não me refiro a cuidados básicos de saúde) e ao acesso ao emprego.
Um verdadeiro Orçamento de Estado deveria focar-se na educação, na saúde, na habitação e na cultura (sim, na cultura!). A questão da educação é um pilar inquestionável desta estratégia social. Não chega apenas dar-lhes peixe, é fundamental ensinar-lhes a pescar. A educação e a cultura andam de braço dado e é míope o governante que não reconhece nas artes uma ferramenta essencial de desenvolvimento pessoal e de crescimento enquanto sociedade. Continuar a ter Orçamentos de estado que humilham a cultura, taxas de IVA que tornam igual um livro e um charuto, ou um Orçamento para a educação que não é mais que um mapa de salários, é condenar à partida qualquer estratégia séria de mudar o problema.
A saúde é outro dos pontos base. Temos um sistema de saúde que nos deveria orgulhar. Universal, tendencialmente gratuito e com excelentes profissionais. No entanto, as falhas são muitas e, por vezes, invisíveis. Percebemos que não é um sistema justo quando quem não tem capacidade financeira não tem forma de ultrapassar os intermináveis tempos de espera por uma simples consulta e quando estas mesmas pessoas não têm acesso a medicamentos que efetivamente lhes podiam conceder melhor qualidade de vida, ou, até mesmo, salvar a vida.
Finalmente, a habitação digna. Muitas câmaras municipais têm esta bandeira. Infelizmente, mais não fazem que potenciar guetos modernos, o crescimento de empresas públicas e o agravar do problema da integração social. Não é oferecendo casas que se resolve o problema. Não é criando rendas “acessíveis” que se resolve o problema. Muitas vezes a solução passa por pequenas coisas. Por intervenções em habitações próprias e que não garantem uma verdadeira qualidade de vida a quem lá habita. Todos conhecemos o benefício (muito positivo) para quem decidir trocar janelas de forma a ter melhor eficiência energética, a sua fatura de eletricidade, a sua qualidade de vida e a qualidade da sua habitação. No entanto, este apoio está limitado a 85% e quem é pobre não têm os restantes 15%. O “tal” Orçamento não pode só preocupar-se com a refeição da criança na escola, mas deveria pensar também que essa mesma criança depois habita num local sem condições e custa menos mudar janelas que construir um novo apartamento num qualquer bairro social.
Nota final
Termino com duas reflexões. A primeira prende-se com um estigma absurdo e com origens identificadas em que quem se preocupa com estes temas e olha para a criação de um verdadeiro elevador social e uma sociedade mais justa e igualitária é obrigatoriamente de esquerda. Eu sou convictamente de direita e na “minha direita” não há elitismos, não há xenofobia e não há racismo. Na “minha direita” há seres humanos. Em segundo lugar uma consideração sobre o Orçamento. Eu não sei se vamos ter Orçamento ou não, eu sei que o Portugal real vai ter um mau Orçamento e que os nele habitam se preparam para mais uma fase muita desafiante nas suas vidas. Talvez fosse melhor salvar os portugueses…