Os reality shows foram introduzidos pela TVI no nosso país em 2000, através da primeira edição do Big Brother. Apesar das audiências terem caído com o tempo, a verdade é que à semelhança de outros países, os canais portugueses continuam a apostar neste tipo de programas, embora com formatos um pouco diferentes. Mais recentemente surgiu uma enorme polémica em torno do programa SuperNanny apresentado pela SIC. Mas afinal quais são os problemas evidenciados por este tipo de programas?

O primeiro problema está associado ao culto do voyeurismo. A curiosidade de saber a intimidade da vida dos outros é uma característica tipicamente humana, embora não seja propriamente uma virtude. A fórmula televisiva inspirada na bisbilhotice da vida privada continua a ser utilizada abundantemente com algum sucesso, e nem os programas de entretenimento escapam a esta tendência. Nos vários canais televisivos somos confrontados com a exposição pública da intimidade de pessoas — frequentemente humildes e ingénuas — que sorriem para a câmara, atraídas pela fama efémera, alimentando deste modo uma produção permanente de lixo televisivo. Este “nudismo biográfico” é servido a granel, como se fosse uma ração diária para os espectadores, numa lógica de mercado: o espectador tem uma necessidade voyeurista e as televisões satisfazem esse hedonismo vicioso, mantendo as audiências.

Dificilmente, através desta fórmula televisiva, ficarão gravadas na nossa memória mensagens importantes. As vidas alheias exibidas através de uma câmara, sem um tratamento jornalístico sério e ponderado, não passam de tédio televisivo. Também nunca serviu como terapia em psiquiatria o consolo obtido pelo conhecimento pormenorizado da desgraça e miséria alheia. O mesmo se poderá dizer relativamente à contemplação da futilidade de algumas dessas existências humanas que são injustificadamente idolatradas neste tipo de programas.

O segundo problema está relacionado com a desinformação. Os meios de comunicação social ­— e a televisão em particular — podem ser utilizados para manipular as pessoas, tratando-as como se fossem mentecaptos. Por exemplo, o SuperNanny falseia a realidade, através de uma visão enviesada e demasiado simplificada. O programa televisivo apresenta-nos uma perspetiva redutora das alterações dos comportamentos das crianças, como se não houvesse a necessidade de um diagnóstico clínico, familiar e social. Estes casos necessitam habitualmente da intervenção de uma equipa multidisciplinar experiente, constituída por pediatras, pedopsiquiatras, psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, professores, etc. É preciso que as pessoas saibam que, perante situações desta natureza, devem recorrer a uma ajuda profissional. O Estado tem várias respostas que podem e devem ser utilizadas.

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Convém referir que alguns destes programas têm como participantes profissionais de saúde, que são recrutados numa tentativa de procurar dar uma maior credibilidade a este tipo espetáculos televisivos. Os profissionais de saúde devem resistir à tentação da popularidade fácil e recusar participar em programas televisivos de pacotilha, sempre que estes violem princípios éticos fundamentais. As ordens profissionais (dos médicos e psicólogos) têm um papel pedagógico importante, devem esclarecer a sociedade e, se for necessário, intervir disciplinarmente.

Finalmente, chegamos ao problema da defesa da dignidade humana, que é válida para as crianças e também para os adultos. As televisões transformaram-se em predadores de audiências. Já há muito tempo que os limites do respeito pela pessoa humana foram ultrapassados por motivações económicas. Mas, não há maior crueldade do que a de quem se aproveita das pessoas que sofrem para delas obter lucro ou proveito. Por isso, se não forem impostos limites éticos, estes programas de televisão, que expõem casos concretos de adultos e crianças, num espetáculo circense deplorável, irão espalhar-se como se fosse uma gangrena; como se fossem lamaçais de degradação humana expostos a céu aberto.

Médico Psiquiatra