Estamos ainda sob o choque do que aconteceu nos Estados Unidos no início de janeiro. A democracia é frágil e vulnerável a ataques, tanto do interior como do exterior. Nós, os que defendemos a democracia, somos culpados de negligência e de acreditar ingenuamente que a democracia e os seus valores e liberdades se podem defender a si próprios.
Temos agora uma prova tangível, embora trágica, de que isso não é verdade e de que muitas pessoas perderam a confiança nas instituições democráticas. Sabemos também que o mundo digital tanto cria oportunidades como comporta enormes riscos para as democracias. Chegou agora o momento de pôr ordem na dimensão digital da democracia. Os factos pertencem a todos, as opiniões pertencem a cada indivíduo. Desta vez, foi nos Estados Unidos que esta distinção básica foi ignorada, mas as mesmas sementes também germinam na Europa. Só a confiança ― na ciência, nos governos e na sociedade ― poderá travar o seu crescimento.
Neste momento, a atenção centra-se no papel das grandes empresas tecnológicas. É verdade que contribuíram para a propagação de teorias da conspiração. É também verdade que lucraram com a desinformação e permitiram a indivíduos mal-intencionados perseguirem objetivos económicos ou políticos. Fugiram às suas responsabilidades e é um facto que influenciam e podem mesmo controlar o nosso debate democrático.
A possibilidade que têm de cancelar permanentemente a conta de um presidente dos EUA em funções com base em critérios pouco claros e sem qualquer tipo de supervisão representa um enorme risco para a liberdade de expressão. Se bem que acredite que a instigação irresponsável do presidente Trump à violência merece ser punida, é evidente que não podemos continuar assim. Em última análise, até um relógio parado dá a hora certa duas vezes por dia.
O que podemos fazer? A resposta é complexa, porque democracia implica complexidade, e terá de ser exaustiva. Não podemos continuar a reagir caso a caso, enfrentando apenas o problema que nesse momento faz as manchetes da imprensa.
Em primeiro lugar, precisamos de uma regulamentação mais rigorosa, de obrigações mais executórias e de uma responsabilização acrescida dos operadores digitais. O regulamento sobre os serviços digitais que propusemos recentemente contribuirá para uma maior responsabilização das plataformas digitais e para a clarificação das normas para a remoção de conteúdos ilegais. É uma proposta inovadora, mas vai demorar o seu tempo a ser aplicada; e precisamos de agir já.
Isto leva-me ao meu segundo ponto. Temos de adotar medidas imediatas para reorganizar a nossa participação democrática na era digital e nos dotarmos de melhores ferramentas para combater a desinformação e os conteúdos nocivos. O Plano de Ação para a Democracia Europeia traça o percurso a seguir. Precisamos de um novo pacto contra a desinformação, de uma gestão responsável dos algoritmos e de fazer com que as empresas deixem de reagir impulsivamente e façam parte de um sistema previsível e inequívoco. As suas políticas têm de ser mais transparentes, assim como o acesso aos dados relevantes.
A regulamentação, por si só, não pode e, em minha opinião, não deve reger todos os aspetos da vida digital. Não podemos sacrificar a liberdade de expressão, que necessita de um espaço aberto, também ele digital. Mas temos de reformular os esquemas mentais das empresas tecnológicas e dos seus trabalhadores. Os arquitetos não obedecem apenas a leis. Têm também de respeitar códigos deontológicos, para que os edifícios que concebem sejam seguros para as pessoas. Os programadores e informáticos deveriam ter uma abordagem semelhante na conceção de algoritmos, mas raramente ouvi este facto ser mencionado por dirigentes de empresas tecnológicas.
Por último, temos também que nos compenetrar de que Donald Trump não é apenas uma causa, mas é sobretudo um sintoma. As causas subjacentes à divisão, à desconfiança e à frustração que ameaçam os Estados Unidos não vão simplesmente desaparecer quando ele deixar a Casa Branca. E este fenómeno não afeta apenas a sociedade americana. Também se faz sentir aqui, na Europa.
Por esse motivo, vamos ter de trabalhar com o novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e unir esforços, enquanto aliados, para definir regras comuns que reflitam os nossos valores democráticos. Existe um consenso alargado, de ambos os lados do Atlântico, de que as grandes empresas tecnológicas levantam problemas que podem ameaçar a democracia e de que faz sentido arranjarmos soluções comuns para esses problemas.
Porém, não nos podemos limitar a regular as plataformas. Temos também de adaptar os nossos sistemas de ensino à realidade digital. Temos, todos nós, de adquirir mais competências digitais, de ter um mínimo de conhecimentos sobre o que se passa no mundo virtual e sobre a razão de ser de certos conteúdos. Deste modo, poderemos garantir a nossa segurança quando navegamos na Internet.
Temos de deixar de aceitar, como se fossem normais, os ataques aos nossos valores, ao Estado de Direito, aos juízes e aos meios de comunicação social independentes, aos direitos fundamentais e à democracia. Temos de reagir. Temos de mostrar a toda a gente que os riscos para a democracia ameaçam também os nossos direitos e as nossas liberdades. Por banal que nos pareça a realidade democrática, temos de voltar a encontrar nela algo que nos faça vibrar.
Nasci na ex-Checoslováquia e sei bem o que é viver num regime comunista, alheio à democracia e à igualdade de direitos. Também sei que a democracia não é perfeita. É o reflexo do que somos, mas a sua maior vantagem é que depende de cada um de nós e da confiança que temos uns nos outros. E isto é algo por que vale a pena lutar.