No período em que exerci funções na Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia (REPER) era comum ouvir os meus colegas dinamarqueses e britânicos dizerem que tinham uma “reserva de análise parlamentar” em relação ao que então negociávamos. Dito de outro modo, aqueles representantes dos Estados-Membros nas instâncias preparatórias do Conselho da União Europeia não podiam manifestar apoio ou rejeição quanto a textos relevantes em debate sem que, antes, os seus parlamentos definissem qual a orientação a seguir.
Esta realidade, de maior escrutínio e de maior exigência, contrastava com a da maioria dos (então) vinte e oito em que os parlamentos tinham pouca voz no processo da formação da vontade dos seus Estados e em que a negociação no quadro europeu dependia quase exclusivamente dos governos. Eram (e são) estes quem concentrava a maior parte da informação e era sobre estes que recaía a responsabilidade da condução de praticamente todas as negociações.
No momento em que mais de 70% da legislação que aplicamos quotidianamente tem origem europeia, continuar a olhar para a Assembleia da República como a principal fonte da produção legislativa significa não entender que o quadro político em que nos movemos e em que temos que agir se ampliou profundamente. O nosso parlamento, apesar de ter perdido o monopólio da legiferação, dispõe de outro papel relevantíssimo: o do acompanhamento, apreciação e pronúncia no âmbito do processo de construção da União Europeia (vd. Lei 43/2006), mas, infelizmente não o vem exercendo da melhor maneira.
Em Portugal, o parlamento escrutina de modo muito deficiente a actuação do governo e as posições que este adopta, a estratégia da União e o processo da produção legislativa europeia. Este alheamento enfraquece-nos colectivamente e reduz a capacidade que o país deve ter de afirmar posições próprias, em detrimento de algum seguidismo e replicação acríticos que nunca nos beneficiarão. A título de caricatura, note-se que a Assembleia da República debateu em sessão plenária as prioridades da Presidência romena no dia 19 de Março de 2019, ou seja, quase três meses depois de esta ter começado e a pouco mais de três meses do seu fim…e que seleccionou um conjunto de iniciativas e/ou temáticas europeias, cujo escrutínio considerou ser prioritário naquele ano, a 19 de Julho (Resolução 195/2019 publicada a 17 de Setembro no Diário da República).
Se este cenário não é, de si, nada lisonjeiro, a recente proposta do grupo parlamentar do PSD (Projecto de lei 460/XIV/1.ª de 26 de Junho) para a redução dos debates em sessão plenária sobre os Conselhos Europeus com a presença do Primeiro-Ministro é um absoluto contrassenso face à inevitável “europeização da política” que hoje experimentamos. Esperava-se que uma iniciativa deste teor – ao arrepio não apenas da maior interpenetração entre as esferas políticas nacional e europeia, que é cada vez mais evidente, mas do próprio bom senso – tivesse uma fundamentação consistente e estruturada. Infelizmente, o GP PSD optou pelo minimalismo: em seu entender, “a realização de um debate em sessão plenária, com a participação do Primeiro-Ministro” antes de cada Conselho Europeu “é excessiva”. Ponto.
Aqui chegados, o melhor é lembrar o que é e o que faz esta instituição europeia. Como se verá, é coisa pouca: compete ao Conselho Europeu dar à União os impulsos necessários ao seu desenvolvimento e define as orientações e prioridades políticas gerais da União (art. 15.º TUE). Ou seja, se aquele projecto de lei vingasse, a Assembleia da República não poderia pronunciar-se mais do que duas vezes por ano em sessão plenária sobre a acção d´«o novo centro de gravidade política na formulação de políticas» da União (Puetter, 2014), composto pelos Chefes de Estado ou de Governo dos Estados-Membros, bem como pelo seu Presidente e pelo Presidente da Comissão Europeia.
Assim sendo, em pelo menos metade das ocasiões, a discussão sobre a estratégia, as grandes decisões e as principais linhas da acção futuras da UE seriam relegadas para a Comissão de Assuntos Europeus cujos membros as debateriam com um membro do governo. Este projecto de lei aparenta desconhecimento de que, à excepção do Primeiro-Ministro, nenhum membro do governo tem assento no Conselho Europeu e que os Conselhos Europeus extraordinários costumam ter tanta ou mais importância que os ordinários.
Mas, então, porquê esta limitação? Então, porque as idas do Primeiro-Ministro são excessivas…
Esmagado por esse argumento, não posso senão recordar os meus amigos que esperavam pacientemente as orientações dos seus parlamentos para conhecerem as posições nacionais sobre matérias legislativas e não-legislativas concretas. Matérias, essas, em discussão não no Conselho Europeu, mas em diferentes formações do Conselho (não, não é a mesma coisa). Imagino a estranheza que sentiriam se lhes dissesse que o principal partido da oposição do meu país procurou escusar-se a debater com o Primeiro-Ministro antes de cada Conselho Europeu no local próprio e mais nobre que é o plenário do nosso parlamento.
Idealmente, para além das sessões plenárias dedicadas aos Conselhos Europeus, as diferentes Comissões parlamentares da Assembleia da República deveriam debater com os ministros com assento nas formações congéneres do Conselho antes de estes terem lugar. Por exemplo, antes dos Conselhos AGRIFISH, o Ministro da Agricultura e o do Mar deveriam ser ouvidos na 7.ª Comissão parlamentar (Agricultura e Mar).
Infelizmente continuamos a colocar a acção política nacional e a europeia em compartimentos quase estanques, quando a realidade demonstra a necessidade de as entendermos como vasos comunicantes e interdependentes. Faltam-nos partidos que percebam que o modo de fazer política mudou irremediavelmente, deputados nacionais capazes de escrutinar a sério a actividade e os projectos das instituições europeias e a acção do governo no contexto europeu e mais jornalistas que compreendam a fundo estas realidades.
Se não formos capazes de trazer o debate das prioridades da agenda europeia para o núcleo da discussão política nacional no exacto momento em que ocorre, aquele de pouco nos servirá. E se há coisa que todos podemos dispensar são pulsões anti-parlamentares. A história demonstra-nos abundantemente que estas costumam ser a ante-câmara das tragédias mais variadas.