Há em Portugal mais ou menos corrupção que nos outros países europeus? Pela própria natureza das atividades de corrupção, não há nenhum indicador objetivo que permita responder a esta questão, nem há uma boa métrica que possa ser usada. O que dispomos é de índices que medem a perceção da corrupção (IPC), pelas pessoas dos próprios países, obtidos através de inquéritos. Os países europeus, à escala mundial, situam-se bem melhor que os de África, América Latina ou Ásia, mas é com os europeus que Portugal se deve comparar. Aqui ocupamos certamente uma posição intermédia entre os mais transparentes e justos (escandinavos) e os relativamente mais corruptos (e.g. Itália, Malta e alguns países do leste europeu). Essa posição no IPC pode ser confirmada usando outros indicadores que estão negativamente correlacionados com a corrupção (e.g. as dimensões de “qualidade do Estado de direito (rule of law)”, e “controle de corrupção” do worldwide governance indicators).
A corrupção deve ser combatida por razões diferentes, embora relacionadas, de ordem ética, legal e económica. É injusta, por dar benefícios indevidos, obtidos por meios ilícitos. É um crime tipificado como tal no código penal. E é economicamente ineficiente, pois aqueles que pagam para obter benefícios indevidos (e os que recebem contrapartidas), não são os que mais valorizam o bem ou serviço concedido (contrato, licença, etc.). Se o fossem, não seria necessário tratar por debaixo da mesa aquilo que poderia ser decidido num concurso, ou num leilão, de forma aberta e mais justa.
O caso de Rui Pinto coloca a justiça portuguesa num dilema difícil e pouco habitual. Por um lado, existem direitos individuais, constitucional e legalmente garantidos, e existem regras processuais do sistema judicial que não podem ser violadas, sob pena de se pôr em causa o próprio Estado de direito. Por outro, quanto mais graves as atividades de corrupção, mais se põe em causa o funcionamento das instituições democráticas. Ora o que Rui Pinto fez foi, a confirmarem-se algumas das acusações de que é alvo, antes do mais usar meios ilícitos para obter “provas” de corrupção, que são muitíssimo difíceis de obter e daí o combate à corrupção ser tão difícil. Essas provas, não podendo ser usadas como meio de prova nos tribunais (dada a sua origem ilícita), podem, e já estão, a ajudar bastante as investigações criminais, não só em Portugal, como confirmou a Polícia Judiciária, como por esse mundo fora (Alemanha, Angola, Espanha, França e Itália). Daí o grande interesse manifestado por estes países na colaboração de Rui Pinto, algo que Portugal só acompanhou mais tarde, e bem, ao incluí-lo no programa de proteção de testemunhas e garantindo-lhe proteção policial e alojamento em local secreto. Adicionalmente, Rui Pinto poderá ter efetivado uma tentativa de extorsão a partir dessas provas de corrupção que obteve, algo que caberá ao tribunal decidir.
Os tribunais não avaliam as provas e não decidem as penas baseados numa análise custo-benefício que os economistas gostam de fazer, mas façamos esse breve exercício. Na parte dos benefícios, estão todos os associados à facilitação da investigação criminal nos diferentes países, que em muitos casos já se concretizou no combate à evasão fiscal, e na reposição às autoridades tributárias de verbas que deveriam ter sido liquidadas e entregues ao Estado, caso do próprio Cristiano Ronaldo. Para além desta dimensão financeira, permitiu reforçar a investigação em importantes casos de corrupção, fraude fiscal, e branqueamento de capitais, já conhecidos — Luanda Leaks e Football Leaks – e outros que estão em curso. Ajudou certamente a revelar práticas ilegais de sociedades de advogados. Há, ainda, outro tipo de “externalidades positivas” associadas. Doravante, indivíduos, ou sociedades, que ponderem desenvolver práticas ilegais ou esquemas financeiros de natureza criminal, envolvendo paraísos fiscais opacos, pensarão duas vezes pois poderá haver um “herdeiro” qualquer de Rui Pinto, em qualquer ponto do mundo, a tentar entrar nos seus servidores ou computadores.
Na dimensão dos custos da actividade de Rui Pinto, estão as consequências negativas, diretas e indiretas, da sua atividade: acesso alegadamente indevido e ilegal a informação, sabotagem informática, violação de correspondência e a já referida alegada extorsão de forma tentada. O sigilo profissional da relação entre advogados e clientes é também indispensável ao funcionamento de um sistema judicial num Estado democrático de direito e não pode ser posto em causa. Os fins não justificam os meios, e por isso Rui Pinto será provavelmente condenado por alguns destes crimes.
Parece claro que Rui Pinto foi e é um denunciante e foi um hacker, que no dicionário de Cambridge se define como: “Alguém que entra nos sistemas de computador de outras pessoas sem permissão para descobrir informações ou fazer algo ilegal”. Esta definição combina um ato com uma motivação. Uma das motivações de Rui Pinto, não sei se a única, foi denunciar as podridões, a corrupção e evasão fiscal no futebol, aquilo que era, e porventura ainda é, a sua paixão, e que não é uma especificidade nacional, mas um fenómeno que não só é global (lembremo-nos da corrupção na UEFA), como só pode ser combatido eficazmente a essa escala.
O tribunal deverá avaliar e julgar as provas dos atos, mas não deverá esquecer as motivações. Se se provar que não houve tentativa de extorsão, e se se provarem atos ilícitos de acesso a sistemas de informação e a dados privados (incluindo mails), deverá ser condenado pelos crimes que terá cometido. Porém, neste caso, não só a motivação de Rui Pinto coincidirá com um valor de interesse público (combate à corrupção), mas também a sua colaboração com a investigação criminal, devem servir ambas para atenuar a pena. Faça-se justiça em relação a Rui Pinto, e também a todos os que são hoje acusados pelo Ministério Público ajudado pelas suas revelações.