Preâmbulos, prólogos e proémios não são coisas de menor importância, pois dão um tom, marcando finalidades e rumos. O preâmbulo da Constituição da República Portuguesa – prestes a fazer 48 anos e religiosamente conservado nas várias revisões constitucionais – afirma o seguinte: “A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno”. Como será que este desígnio nos moldou? Meio século de democracia abriu caminho para “uma sociedade socialista”? Será esta a única ou a melhor forma de construir “um país mais livre, mais justo e mais fraterno”? Caberá ao pensamento e prática socialista algum tipo de “monopólio” da reflexão e sensibilidade social? São perguntas legítimas, ainda que a ciência jurídica ensine que as epígrafes ou preâmbulos dos artigos de leis não têm propriamente valor normativo.
Em França, na Alemanha e Inglaterra, vários pensadores (Fourier, Proudhon, Owen, Marx e Engels) verteram a justa empatia social com a multidão de pessoas objetivamente exploradas, numa proposta de ideais filosófico-práticos socialistas que, ao longo da história, passaram por fases utópicas, experimentais, anarquistas, revolucionárias, “científicas”, autoritárias, ditatoriais e democráticas, mas nem sempre por esta sequência. Nos primórdios do socialismo, Antero de Quental (1842-1891) é talvez a figura que melhor encarna em Portugal a nova filosofia. Coerente com os seus ideais, estudou e entendeu as grandes tendências do pensamento Europeu, foi operário de tipografia e escreveu sonetos que bem se podem rezar. Finalmente, pôs trágico termo aos seus dias, à porta do Convento da Esperança, em Ponta Delgada, na Ilha de São Miguel.
O socialismo afirmou-se no século XIX, como resposta às enormes injustiças sociais causadas pelo advento da sociedade industrial, que na sua cúpula era capitalista e revelava fortes traços de individualismo.
Embora seja mais próprio falar de “socialismos” do que de “socialismo”, podemos identificar traços de família que se vão somando. É um exercício saudável analisar o mapa genético das correntes de pensamento e ação que, por analogia, também têm genótipo, fenótipo, mutações, genes recessivos e dominantes. No nosso caso, é bem possível que por influência do preâmbulo constitucional, alguns desses traços genéticos tenham somatizado em mundividências e práticas, que marcam presença, aqui e acolá, em todo o espectro político, social – e até eclesial – português. Vejamos três traços característicos desse “genoma”.
O primeiro é o materialismo histórico e dialético, isto é, uma visão da história da humanidade entendida como “a história da luta de classes”, onde a dimensão espiritual está excluída à partida. Surge daqui um “dever revolucionário”, que confere o autêntico propósito à vida. No nosso caso, isso expressa-se na incapacidade de ver no outro um parceiro construtivo, mas apenas um adversário com quem estou em permanente combate, quanto mais extremado melhor. A reivindicação de direitos – reais ou imaginados – torna-se a atitude de base, onde ganha quem tiver mais voz. Joga também papel importante o preconceito de classe, segundo o qual as pessoas são catalogadas a partir do “tipo social” a que pertencem, sem apelo nem agravo. O materialismo emerge, por fim, sob a forma de um laicismo que impede de valorizar e enquadrar – de forma saudável e proporcionada – a dimensão espiritual e religiosa de pessoas e comunidades, confinando-a compulsivamente ao âmbito privado e íntimo. Nesta perspetiva, as Igrejas são essencialmente parte do problema, mais do que da solução. A “amizade social” proposta pelo Papa Francisco torna-se uma miragem.
O segundo traço é a supremacia da abordagem ideológica. É essencial ter ideais e conceitos; é nocivo ser vítima da ideologia, seja ela qual for, pois esta é sempre uma forma de forçar a realidade a caber num esquema conceptual. E quando uma ideologia – convencida da sua “superioridade moral” – advoga a “revolução cultural”, temos o caldo entornado: desde temas mais simples como a imposição de “acordos ortográficos” até temas maiores, como os relacionados com a ideologia de género. O afã do controlo dos processos e programas educativos e culturais tornou-se imagem de marca de lideranças políticas que querem, à força, criar “o Homem novo”. Mas… como se renova a humanidade? Através da humanização de práticas e atitudes ou produzindo novos seres, fruto de condições sociais pré-programadas, como defenderam o nazifascismo e os comunismos soviético ou chinês? É bom lembrar que algumas filosofias socialistas advogaram, desde cedo, a superação da família dita “tradicional”: de mãe, pai e filhos. Por fim, a abordagem ideológica defende e difunde uma revisão da História, que em vez de completar narrativas opta por cancelar ou manipular. Uma epopeia virada ao contrário, portanto. A cereja no topo do bolo é-nos trazida pela propaganda que assume formas variadas: controlo de narrativas mediáticas, agitação “de fachada”, soundbytes, fake news, etc. A versão mais perversa do socialismo – o nacional-socialismo – cunhou mesmo a expressão tristemente famosa: “uma mentira repetida mil vezes, torna-se numa verdade”. Mas isso foi noutra época…
O último traço a notar é a abordagem coletivista e estatista. Embora seja difícil (não impossível!) encontrar quem defenda a coletivização dos meios de produção, a máxima de Proudhon – “a propriedade é roubo” – parece ter vários adeptos lusitanos, que veem na iniciativa privada uma afronta ao coletivo. Por isso deve ser intervencionada, controlada e, sobretudo, taxada. Assim vai crescendo um Estado ávido em legislar, que em vez de ser árbitro imparcial, garante do bom rigor técnico, amigo da iniciativa dos cidadãos, defensor dos mais fracos, corretor de interesses e desequilíbrios estruturais, se tornou no parceiro indispensável para fazer negócio, obter emprego ou qualquer forma de redistribuição social. Infelizmente, estas parecem ter-se tornado, também, motivações comuns para votar, algo que a “partidocracia” (cada vez mais desligada das comunidades) agradece. A abordagem estatista convive mal com a sociedade civil, abafando a criatividade e os contributos das suas agremiações, sobretudo as pequenas e médias. Há até quem defenda que o Estado deveria ter o monopólio das instituições de solidariedade social. Apesar de tudo isto, é evidente que a empatia social – por onde o socialismo historicamente começou – não foi suficiente para que o nosso Estado impedisse a perpetuação de formas de pobreza, nem tão-pouco de egoísmos que nada podem contra o velho (do Restelo…) espírito corporativo de gerações, profissões, partidos ou grupos económicos. A defesa do bem particular, mesmo o dos grupos, parece ter hoje mais expressão social entre nós, do que um discernido empenho pelo bem comum.
O contexto político e social que se vivia em 1976, não dava aos deputados da Assembleia Constituinte margem de manobra para uma formulação muito diferente do “caminho para uma sociedade socialista”, com a qual a maioria concordou. O pêndulo da aprendizagem democrática estava ainda a equilibrar-se. Isso foi acontecendo em sucessivas revisões do texto fundamental, mas o preâmbulo da Constituição lá ficou, como uma “lápide histórica”… ou talvez não.