Buriácia, Daguestão e Tuva. Estes três nomes dificilmente dirão alguma coisa à generalidade dos portugueses ou, indo mais longe, à generalidade da população mundial. Eu própria, amante de geografia desde que me lembro, e que com dez anos já listava os cinquenta estados dos E.U.A. nas toalhas de papel dos restaurantes, só descobri no ano passado que estas três palavras correspondiam ao nome de três repúblicas russas. Nomeadamente, a três repúblicas russas cujas populações estão a ser cruelmente fustigadas pela guerra russo-ucraniana. E é esse fenómeno que pretendo expor e criticar neste artigo.

Convém, primeiramente, esclarecer o que é uma “república russa”. A Federação Russa possui 83 divisões federais (excluindo, obviamente, regiões ocupadas e não reconhecidas pela ONU como sendo russas, como é o caso da Crimeia), sendo que estas, por sua vez, podem adotar diferentes tipologias – oblasts, repúblicas, krais, okrugs e cidades federais. As repúblicas constituem 22 das 83 divisões federais e gozam de um estatuto especial face às restantes, possuindo uma constituição própria mas sendo representadas pelo governo federal em questões internacionais. É nas repúblicas, também, que se tendem a estabelecer determinadas minorias étnicas. No caso da Buriácia, do Daguestão e de Tuva, há a predominância dos povos buriatas (de origem mongol), avares (de origem caucasiana) e tuvanos (de origem mongol), respetivamente.

Estas três repúblicas têm sido particularmente afetadas pela invasão russa à Ucrânia. E não apenas devido às consequências económicas, sociais ou desportivas desencadeadas pelas sanções à Rússia ou pela própria guerra, mas também por apresentarem um número alarmante e desproporcional de perdas humanas.

De acordo com Mariya Vyushkova, num artigo disponível na publicação Inner Asia, desde o início da dita “operação militar especial” que a sobre-representação de indivíduos de etnias minoritárias entre os soldados mortos na Ucrânia tem sido evidente. Alexey Kovalev, jornalista russo, foi mais longe e, num artigo publicado na Foreign Policy Magazine, disse mesmo que as minorias étnicas, especialmente as originárias da Buriácia, do Daguestão e de Tuva, têm constituído o cerne da “carne para canhão” do conflito orquestrado por Putin. As três repúblicas, inclusive, apresentam um número de baixas extremamente superior ao da região de Moscovo – sendo que esta possui 17 milhões de habitantes enquanto que as repúblicas, ao todo, possuem apenas cerca de 5 milhões (aproximadamente 3 milhões de pessoas residem no Daguestão, 980 mil na Buriácia e 300 mil em Tuva).

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Segundo Victoria Maladaeva, vice-presidente da Free Buryatia Foundation – uma organização criada com o fim de fazer oposição à guerra e chamar a atenção para o sofrimento das minorias – a probabilidade de um buriata ser morto na Ucrânia é 7.8 vezes superior à de um russo étnico, enquanto um tuvano enfrenta uma probabilidade 10.4 vezes superior. Posto isto, mencione-se, na Federação Russa vivem cerca de 300 mil tuvanos e 105 milhões de russos étnicos.

As minorias étnicas, sendo dos povos que mais passam por dificuldades financeiras dentro na Rússia, veem o ato de se juntar ao exército como uma possível porta de entrada para uma vida melhor. Porém, não será erróneo dizer que interessa a Putin – fervoroso nacionalista russo – enviar minorias étnicas para a frente de batalha ao invés de russos étnicos. Se triunfarem, muito bem. Se morrerem, temos pena. Morreram cidadãos de segunda (é assim que as minorias são vistas por muita gente dentro da Rússia). Tal mentalidade não é nova. Na segunda guerra mundial, foram convocados milhares de argelinos para combater por França.

Esta questão tem sido amplamente ignorada pelos media e pela comunidade internacional. Não devia. Fala-se, naturalmente e muito bem, dos efeitos que a invasão russa tem tido no povo ucraniano, que tem lutado corajosamente pela sua soberania. Pensa-se pouco, porém, no facto de dentro da Rússia existirem milhões de pessoas que sofrem com as práticas sangrentas e imperialistas do Kremlin. Entre estas pessoas estão não só imensos russos étnicos como cidadãos de várias minorias aos quais não se tem dado quase nenhuma visibilidade ou atenção e que, por vezes, até são indiciados como malfeitores.

A própria Ucrânia já acusou as minorias étnicas de realizarem grande parte dos crimes de guerra. Foi provado, entretanto, que tal informação é errada ou enganadora – por exemplo, chegou a descobrir-se que determinados soldados acusados de tais ações tinham, na verdade, deixado o exército muito antes da invasão. Povos esquecidos pelo governo federal e discriminados pela maioria veem, agora, os seus amigos e familiares morrerem numa guerra perpetrada por quem pouco quer saber deles e não lhes dá voz. São russos. Mas é só quando convém. Por outro lado, porém, as entidades que se têm insurgido contra a guerra também não parecem estar particularmente interessadas em vocalizar e defender os seus direitos. E estas minorias permanecem, então, completamente desprotegidas, enquanto continuam a ser vilmente instrumentalizadas.