Sou Professor, um profissional de certezas e, fundamentalmente, de dúvidas e incertezas.
Tenho 55 anos. Vivenciei (sério!) o dia 25 de Abril de 74. Vivenciei porque cresci numa família que nos educou (abriu portas) e nos permitiu aprender (e desaprender através dos múltiplos disparates que fomos cometendo). Não era uma família republicana ou de pergaminhos oposicionista, eram apenas pessoas livres, inteligentes e principalmente capazes de dar liberdade e permitir o erro, sem se recusarem a estar lá quando, depois, aprendida a lição, fosse porventura necessário um braço amigo.
No ano anterior, 1973, apesar do meu pai acabar de sofrer um enfarte, nós os filhos mais velhos, sentimo-nos livres de participar numa Assembleia Geral do MAEESL (Movimento Associativo do Ensino Secundário de Lisboa). Acabámos todos presos no Governo Civil, com o cabelo rapado e com processos disciplinares em cada um dos nossos liceus.
Em 1 de Maio de 1974 todos saímos de casa, os meus pais para a grande festa da Almirante Reis e do Estádio da FNAT, os meus irmãos para as manifs do respectivos movimentos (já então a “esquerda” falava a infinitas vozes, todas elas irreconciliáveis) e eu que queria ir para a manifestação de uns acabei na de outros (agitando uma bandeira vermelha com a foice martelo e estrela bem na frente).
Os anos seguintes foram fascinantes. Da vivência de um PREC que me ultrapassava por demasiado rápido e codificado, à militância num movimento de estrema esquerda que me ocupou o ano lectivo a organizar “meetings” e a estudar nada, até ao assumir de tarefas quase profissionais, transcrevendo as notícias dos meses escaldantes do Outubro e Novembro de 75 para o Comité Central do mesmo.
Em 31 de Janeiro de 76 senti que deixara de ter liberdade e capacidade de ser e fugi do “partido” (não é o que estão a pensar). A partir daí tenho sido ferozmente “independente”.
Tal não me impediu de militar de muitas formas e em muitos espaços. Apoiei os GDUP (sem apoiar o Otelo), preocupei-me com as questões ambientais, fundei com colegas a Associação de estudantes da minha Faculdade, envolvi-me, acabei sendo convidado (e aceitei) para consultor de um dos poderes constituintes do Estado português.
Nunca mais militei, recusei todos os convites para ser membro de grupos (fossem eles Organizações não Governamentais, fossem partidos do arco do poder), prezei sempre a minha capacidade de dizer não e de pensar pela minha cabeça e falar pela minha boca.
Pelo meio, descobri a música (de intervenção e não só) e emocionei-me como só um neófito o consegue.
Fui cumprindo a minha carreira, como Docente Universitário, investigador, consultor profissional na área da engenharia, mas sempre, procurando ser apaixonado e sempre coerente.
Coerente com um sistema de valores complexo que mergulha nos valores da honradez que meus pais me transmitiram de seus pais, de solidariedade e atenção, que a educação católica que recebi me inculcaram e, particularmente, de ombridade, no sentido da plenitude do ser e do atender. Ser, como pessoa autónoma que pensa pela sua própria cabeça e não rejeita, antes acolhe, a dúvida e a incerteza. Atender, no sentido de olhar o outro com os olhos com que nos olhamos, de parar sempre (que possível, já que ninguém é perfeito) para pensar: “e que sentiria eu?”, de ouvir e reflectir quando as minhas certezas eram contraditadas e mesmo desfeitas. Atender, por fim, no sentido de ter como valor primeiro o querer participar no progresso e qualificação da humanidade e da vida.
Mas atender também, quando confrontado com a intransigência, atender, quando, exprimindo uma dúvida racional me respondiam com um chavão e o ostracismo, atender quando a realidade e a história se sobrepunham à crença e às “Estórias” de “amanhãs que cantam ou cantaram”, atender, por fim, à nossa real dimensão, como quando, perguntando ao Director do Museu de História Natural de Paris onde nos conduzia o Armagedão ambiental que antevia no discurso catastrófico do movimento ecológico, ele me respondeu, singelamente, “ao desaparecimento dos Seres Humanos, porque a Vida essa sobreviverá, como já sobreviveu a inúmeras catástrofes globais anteriores”. Nunca recebi uma tão grande lição de humildade!
Com tudo isto, fui crescendo e aprendendo, procurando, ao mesmo tempo transmitir os meus conhecimentos e experiência, quer como professor, quer como indivíduo e participante do todo social. Ao longo de todo este tempo, sempre me considerei “de Esquerda” no sentido da tal Atenção e Preocupação com os outros e o seu bem-estar.
Nesta consideração, evoquei, muitas vezes, particularmente em contextos profissionais e políticos, a urgência do que designava por um “novo Programa de Bad Godesberg” referindo-me ao congresso do SPD alemão em que o marxismo foi abandonado como ideologia condutora e se reconheceu o primado da liberdade e da individualidade. Esse novo programa corresponderia a uma súmula entre a Esquerda como motor de liberdade, individualidade, progresso e atenção e a consciência de que os seres humanos, enquanto espécie, chegaram a uma encruzilhada em que, se não optarem por se assumirem como seres, humanos porque capazes de antecipar a satisfação futura pelo sacrifício presente, continuem, à semelhança de todos os restantes seres vivos, a agir e reagir apenas em função do benefício imediato, cumprirão o prognóstico da sua certa extinção.
Na altura coloquei este desafio enquanto “homem de esquerda”. Hoje, penso que o significado do lado em que um está relativamente ao Anfiteatro da Convenção Republicana de 1790 é irrelevante, ainda mais quando o “ser da esquerda” se sobrepôs ao “ser de esquerda”, reduzindo o que era uma postura construtiva e (intimamente – assim o cria eu) altruísta, a uma lógica de clã, de grupo, de matilha, defendendo o seu território com a mesma cegueira e primarismo bestial que qualquer outro dos nossos congéneres “não humanos”.
Sinto-me pois um desenraizado e, mais do que isso, um desenquadrado. Tenho essencialmente dúvidas num mundo em que todos me confrontam com certezas. Como posso ser em absoluto contra as touradas quando conheço tanta gente boa que gosta delas? Como posso aceitar o paternalismo estatista que antes de responsabilizar, prefere constringir, restringir, proibir? Como posso construir, quando hoje quem me diz “para não ir por aí” já não é uma polícia política concreta, mas antes uma vergonha insidiosa de pensamento correcto, uma vivência e pensamento social que impõe uma normalidade muito mais estrita que muitos livros únicos, enfim, uma complacência acrítica com a norma, que torna hoje muito mais subversivo (e infelizmente quase inócuo) afirmar que “não sei para onde vou, mas não vou por aí!”.
Há anos, dediquei um livro aos “meus filhos, que empenhei ao futuro da humanidade”. Hoje questiono-me se ainda creio nesse futuro e se não os defraudei. Não por mim, mas porque não consegui, neste trajecto político, docente, de cidadania, sentir que ainda consigo crer.
Quando penso nas alegrias sentidas ao longo destes 55 anos (e, em particular, de muitos dos últimos 40 anos), angustia-me pensar que muitas delas se associam a crenças, a investimentos, que hoje mais não são que espaços de interesse e oportunismo e que, realisticamente, pouco posso garantir aos meus filhos. E essa angústia é tanto maior, quando esses espaços foram tomados pela auto-designada Esquerda, que disso, já tem muito pouco ou mesmo nada, e constitui apenas, mais uma forma de perspectivar o poder e já nada uma forma de perspectivar o futuro. Que pena pensarmos mais nas classificações do que nos conteúdos (hoje, predominantemente vazios).
Mas continuo a ensinar e a procurar educar (abrir portas), como já o meu pai me ensinou e educou. E isso significa continuar de espírito crítico, aberto a todas as perspectivas, navegando no oceano das cores afastando-me do mundo preto-ou-branco em que querem transformar o nosso quotidiano.
E, como terminei uma aula no passado fim de semana, focalizando a nossa natureza e a nossa forma de estar no mundo, numa palavra: Atenção.
Professor universitário