Hoje voltei a ver a mãe da Sandra. A mãe da Sandra é auxiliar no hospital. Vejo-a por lá e, às vezes, também nos seus passeios pela eco-pista. Cumprimento-a com um acenar da cabeça e um “olá”, a que ela responde do mesmo modo. Ambos sabemos aquilo que sabemos.
Conheci a Sandra quando ela tinha 23 anos e veio à urgência. Tinha um quadro clínico estranho e complexo, que obrigou a um internamento longo e a uma biópsia do fígado arriscada, só possível com o atrevimento de quem é médico novo e tem sangue na guelra. Como era eu na altura e já não sou. Tratava-se de uma doença auto-imune do fígado, que respondeu bem ao tratamento, mas cuja observação ao microscópio não deixava grandes dúvidas sobre qual seria a evolução futura.
Fui o seu médico, e ela minha doente, durante os vinte anos seguintes, com admiração e respeito mútuos. Admirei a forma guerreira como enfrentou, aceitou e compreendeu, tão jovem, a sua doença incurável e chata. E como sempre exigiu aproveitar a vida. Acompanhei o seu casamento, as suas gravidezes e o nascimento das suas filhas. Conheci-as quando as trazia à consulta. Vi-a mascarada de Carnaval, e as pequeninas também, a brincar e a rir, mesmo doente. Aceitou e compreendeu a doença, mas nunca permitiu que esta condicionasse as suas escolhas de vida.
Com o tempo, referenciei-a a centros de transplante, onde nunca se sentiu compreendida. Sempre um número, nunca uma pessoa individual. Preferia ser seguida só por mim e fazer os meus comprimidos, dizia. Só que cada vez menos eu e os meus comprimidos chegavam.
Depois de muita negociação, insistência, diplomacia e apenas perante o agravamento da sua doença, lá aceitou submeter-se ao transplante hepático. E aí então não foi possível outra solução: passou mesmo a ser seguida no centro de transplante.
Mas estava cansada. Cansada de lutar contra o cansaço da doença. Cansada de cumprir exames, deslocações, tratamentos.
Nesta fase, eu ia sabendo dela pela mãe, que encontrava nos corredores do hospital e me actualizava sobre a sua (nossa) Sandra.
Ela era um puro-sangue árabe. Quando já não conseguiu correr mais, parou, deixou de tomar a medicação, e decidiu deixar de viver. Tinha 42 anos. Foi a mãe dela que me contou, um dia em que passou por mim, num corredor escuro do hospital. Depois seguiu caminho, e eu também. Cada um de nós com os olhos a brilhar e a pensarmos na Sandra.
Isto foi há alguns anos já.
Hoje voltei a ver a mãe da Sandra. Ela é auxiliar no hospital. Vi-a por lá. Cumprimentei-a com um acenar da cabeça e um “olá”, a que ela respondeu do mesmo modo. Ambos sabemos aquilo que sabemos.